Plataformas sociais vs Sociedade

Gonzalez vs Google e Twitter vs Taamneh no Supremo Tribunal dos EUA: poderemos estar perante o princípio do fim da Internet tal como a conhecemos?

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos está a analisar dois processos – Gonzalez vs Google e Twitter vs Taamneh – que visam implicar estas duas tecnológicas nos atentados de Paris (2015) e Istambul (2017). Se alguma das demandas for bem-sucedida, poderemos estar perante o princípio do fim da Internet tal como a conhecemos. Mas tal desfecho é altamente improvável, e é precisamente aí que está o cerne da questão.

O primeiro caso ilustra bem a complexidade das implicações de ambos os processos: a família de Nohemi Gonzalez acusa o YouTube (propriedade da Google) de ter colaborado na radicalização dos autores dos ataques de Paris, por, baseando-se nos seus consumos, lhes ter continuamente sugerido conteúdos terroristas. A acusação considera que o sistema algorítmico de recomendações é determinado pela empresa e, por essa razão, o YouTube deve ser penalizado pelos efeitos cumulativos produzidos pela sua curadoria. Ou seja, a acusação defende que o sistema de recomendações não esteja abrangido pela lei que rege a Internet, a famosa secção 230, e que isenta os intermediários digitais de qualquer responsabilidade pelos conteúdos dos seus usuários.

Este pedido atinge o centro nevrálgico do modelo de negócios destas empresas: os algoritmos construídos pelas plataformas rastreiam padrões de uso e geram métricas que fornecem conteúdos aos usuários, mas também usuários aos anunciantes. Ao longo do tempo, as plataformas têm desenvolvido fórmulas de captação e de retenção da atenção das pessoas que exploram valores estruturais das sociedades democráticas: a privacidade (os dados dos usuários) e a liberdade de expressão. Enfurecimento gera engajamento num ecossistema em que florescem indústrias de propaganda e desinformação, de negacionismos e radicalismos.

Não sabemos o que decidirá o Supremo, mas a pergunta, em jeito de desabafo, formulada pela juíza Kagan no dia de apresentação dos primeiros argumentos ilustra bem o regime de excepção em que operam as plataformas sociais: (numa tradução livre) “Todas as indústrias têm de internalizar os custos da sua conduta. Porque há-de a indústria da tecnologia ser excepção?”

Estas empresas têm sabido rentabilizar tanto a polarização partidária (com um lado a dizer que há moderação online a mais e o outro a defender o oposto), como o modelo político norte-americano, em que o lobbying molda a legislação. O sector encabeçado pelas big five (Amazon, Meta, Apple, Microsoft, Google) é o que mais milhões investe em Washington, ao mesmo tempo que explora um contexto cultural que associa qualquer mexida na secção 230 a um ataque à liberdade de expressão.

Se é óbvio que o trabalho sobre a moderação de conteúdos tem de prosseguir, centrar aqui a discussão só vai ajudar a dividir ainda mais a sociedade norte-americana. Este é um daqueles debates sem fim à vista, e com um enorme potencial para agudizar desentendimentos e incompreensões.

Por outro lado, enquanto for aqui que a atenção se detém, o desconhecimento sobre estas empresas continuará: como saber se há coincidência entre o seu discurso e a prática, se quase nada se sabe sobre o modo como organizam o fluxo comunicativo e impulsionam certos conteúdos e grupos nas suas plataformas? No entretanto, a assimetria perpetua-se: a sua opacidade cresce na proporção directa da nossa transparência. Estas empresas detêm os principais ambientes em que os nossos dados são recolhidos e que resultam em análises previsionais de comportamento e modelação de escolhas na área do consumo, mas também da política.

E regressamos ao início: O princípio do fim da Internet tal como a conhecemos, em debate no espaço público americano, produz boas conversas, mas as decisões do Supremo Tribunal não devem conduzir a tal desfecho. Enquanto não alterarem as leis anti-trust, nem produzirem legislação sobre privacidade e vigilância de dados, mudanças com implicações efectivas no modelo de negócios das plataformas, nada de estrutural acontecerá.

É que, ao contrário do que muitas vezes se sugere, estas empresas não acumularam poder na ausência de leis, mas na capacidade de paralisarem um quadro legal que, por isso, se tornou obsoleto: a legislação pré-algorítmica em vigor nesta era pós-algorítmica protege estas empresas na mesma medida em que desprotege as democracias.

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