Há espécies quase extintas que dependem da mão humana, mas estão a ser ignoradas

Desaparecidas na natureza mas vivas em cativeiro, há dezenas de espécies à beira da extinção. Estão 100% dependentes da mão humana, mas “largamente esquecidas”, avisa artigo da Science.

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O órix-de-cimitarra está extinto na natureza Andreia Gomes Carvalho

A última vez que se observou a pomba-de-socorro (Zenaida graysoni) no seu habitat natural foi em 1972. Esta ave é originária de Socorro, uma pequena ilha vulcânica situada no oceano Pacífico, a 600 quilómetros da costa ocidental do México. Os gatos introduzidos na ilha acabaram por extirpá-la ali. Mas, felizmente, ela continua a existir. Muitos anos antes, em 1925, 17 indivíduos foram recolhidos na ilha e transportados para um produtor de aves na Califórnia, nos Estados Unidos. Desde então, já nasceram cerca de 37 gerações de pombas-de-socorro.

Há planos para a pomba ser reintroduzida na natureza, mas os desafios ainda não o permitiram e a ave continua apartada do seu habitat natural. Isto faz com que seja uma das 84 espécies que, em algum momento desde 1950, ficaram extintas na natureza mas foram mantidas pela mão humana, mostra agora um artigo publicado nesta quinta-feira na Science, que revela um panorama difícil para estas plantas e animais que estão na linha da frente da extinção.

“A maioria das espécies extintas na natureza existem num número demasiado pequeno e em poucas instituições, o que aumenta o risco de serem extintas e por isso devemos concentrarmo-nos em fazer crescer o tamanho destas populações e o número de instituições detentoras daquelas espécies”, explicou ao PÚBLICO John Ewen, do Instituto de Zoologia da Sociedade de Zoologia de Londres, no Reino Unido, e último autor do artigo que contou ainda com o trabalho de investigadores sediados em instituições na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos, na Itália, no Reino Unido e na Venezuela.

Da reintrodução à extinção

A União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês) avalia o estado de conservação das espécies e atribui uma categoria consoante o seu risco de desaparecimento. Há três categorias para quando as espécies já estão ameaçadas de extinção: vulnerável, em perigo e em perigo crítico. Se elas desaparecerem da natureza, mas ainda existirem em cativeiro ou forem cultivadas, no caso das plantas, então caem na categoria extinto na natureza (EW, sigla em inglês para extinct in the wild).

De 1950 para cá houve 95 espécies de animais e plantas em situação de cuidado humano, como nos jardins zoológicos e nos jardins botânicos, que sofreram uma extinção na natureza, adianta o artigo.

Destas, 12 voltaram a ser reintroduzidas na natureza, como o caso do bisonte-europeu (Bison bonasus), dado como extinto em 1927, mas que sobreviveu nos jardins zoológicos europeus e foi reintroduzido na natureza em 1952, com as populações selvagens a crescer desde então. Ou como a Diplotaxis siettiana, uma pequena planta de 40 centímetros com flor amarela, endémica de Alborán, um ilhéu mediterrânico de Espanha, que desapareceu daquele território em 1974 e começou a ser reintroduzida no final da década de 1990.

Mesmo que a batalha não esteja ganha para aquelas espécies – a Diplotaxis siettiana continua em perigo crítico de extinção, e o bisonte-europeu ainda é alvo de uma política de conservação –, elas são exemplos de um avanço positivo relativamente à sua situação frágil.

Mas há outras 11 espécies em que, depois da extinção na natureza, os últimos indivíduos acabaram por também morrer em cativeiro, sem deixar descendência. Seis eram espécies de gastrópodes, duas eram de répteis, há ainda um peixe, uma ave e uma planta, a oliveira-de-santa-helena (Nesiota elliptica). Este arbusto originário da ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul, que não é parente da nossa oliveira, desapareceu da ilha em 1994, devido à degradação do seu habitat, e os últimos exemplares em cativeiro morreram em 2003 por causa de uma infecção fúngica e da dificuldade do cultivo daquele vegetal.

Dos animais desaparecidos, talvez o caso da tartaruga-gigante Lonesome George seja o mais mediático. Este réptil tornou-se o último representante da espécie Chelonoidis abingdonii, da ilha Pinta, no arquipélago das Galápagos. O indivíduo foi descoberto em 1971 naquele pedaço de terra e no ano seguinte foi levado para a Estação de Investigação Charles Darwin, em Puerto Ayora, na ilha de Santa Cruz, nas Galápagos. Apesar de tentarem que o Lonesome George se reproduzisse com tartarugas-gigantes fêmeas de outras espécies daquele arquipélago, parentes próximas de Lonesome George, tal não aconteceu e o solitário réptil acabou por morrer de velhice em 2012. Com ele foi o fim da Chelonoidis abingdonii.

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A tartaruga Lonesome George DR

As situações acima mostram como pode ser difícil garantir a manutenção e sobrevivência dos animais e das plantas que estão sob cuidado total humano. Mas tudo depende do esforço feito, argumentam os autores. “Todas as espécies podem ser salvas”, defende John Ewen, acrescentando que “há histórias de sucesso espantosas”, como o caso do bisonte-europeu. “É necessário uma acção corajosa, mas responsável e recursos para fazer esse caminho”, adianta.

Espécies esquecidas

Entre os dois desfechos opostos, da reintrodução na natureza e da extinção completa, encontram-se neste momento 72 espécies em cativeiro em diferentes situações de conservação, como é o caso da pomba-de-socorro, de acordo com a compilação feita pelos autores. Há espécies de peixes, muitos gastrópodes, um geco, um lagarto, aves, um órix e um veado. Entre as plantas, há uma palmeira, três cicas, um tipo de aloé, uma planta suculenta, um feto e duas espécies de manga, uma delas da ilha de Bornéu, no Sudeste Asiático, que embora se possa encontrar em jardins, também não se encontra mais na natureza.

A equipa obteve esta informação a partir de várias bases de dados, de livros de genealogia e de planos de conservação feitos no contexto de jardins zoológicos, aquários, jardins botânicos e comunidades de bancos de sementes.

O panorama que os cientistas revelam agora não é completo, mas sim “fragmentado”, refere John Ewen. “Não podemos aceder a colecções privadas, onde algumas destas espécies ocorrem”, exemplifica o investigador, acrescentando que a informação obtida poderá ser melhorada se houver um esforço conjunto por parte da comunidade internacional de conservação.

Um dos dados que a equipa reuniu foi o número de indivíduos que existe por cada espécie em cativeiro e o número de instituições por onde estão distribuídas. O órix-de-cimitarra (Oryx dammah) conta com mais de 2300 indivíduos em situação de cativeiro. Está acima do patamar dos 1900 indivíduos, o suficiente para as populações “manterem uma diversidade genética” na natureza e poderem prosperar ao serem reintroduzidas no mundo selvagem, de acordo com o artigo.

Mas 80% das 72 espécies tem menos de 1900 indivíduos e muitas ficam abaixo dos 500 indivíduos, como a pomba-de-socorro. “O défice nas espécies extintas na natureza é gritante”, lê-se no artigo. No caso das plantas, apenas 28% das espécies extintas na natureza estão em bancos de sementes, de acordo com a informação destas instituições.

Para a equipa, aquelas espécies estão “consideravelmente esquecidas”, adianta o documento, o que representa uma contradição: “Em grande parte, ignorámos a extensão e a variedade dos riscos de extinção das espécies pelas quais os humanos são mais responsáveis, e cujos futuros estão entre os menos assegurados.”

Falsa esperança

Parece estranho que as espécies mais vulneráveis e mais dependentes dos humanos não tenham a atenção necessária, mas John Ewen associa este facto à forma como a Lista Vermelha das espécies, da IUCN, é feita. “As categorias e as avaliações focam-se quase exclusivamente no estado e na tendência das populações selvagens”, refere.

“Apesar de a categoria EW existir, ela é efectivamente apenas um descritor assim que uma espécie não é mais encontrada no mundo selvagem, mas existe em cativeiro. Não oferece uma categorização para uma enorme variação do risco de extinção [que existe] dentro desta categoria.”

A questão também poderá estar relacionada com o mal-estar dos conservacionistas em relação aos animais em cativeiro, refere Jorge Palmeirim, biólogo e presidente da Liga para a Protecção da Natureza, que não esteve envolvido no artigo. Os animais em cativeiro estão “numa condição que é considerada indesejável, talvez isso também não ajude a uma boa gestão da situação dessas espécies”, refere o biólogo ao PÚBLICO.

Ao mesmo tempo, há “uma falsa esperança” de que as espécies em cativeiro estão controladas e a salvo da extinção, adianta Jorge Palmeirim. “Esse controlo é sempre parcial e há muitos problemas que podem ocorrer com estas espécies que são incontroláveis”, diz o conservacionista, que é especialista na ecologia de morcegos.

Um dos alertas que o artigo lança é sobre as espécies que estão a ser mantidas em poucas instituições. Há seis tipos de plantas que existem apenas numa instituição. Se algo acontece a uma destas instituições, desde um desastre natural até a uma crise económica que leva à quebra no financiamento, há um risco real de desaparecimento dessa espécie que alberga.

“A sensação de descanso é perigosa para o futuro das espécies”, avisa Jorge Palmeirim, que considera o novo estudo “muito útil” por mostrar que estes animais e plantas não estão a ter a atenção que deveriam.

No entanto, o biólogo discorda sobre as provas dadas no passado, de que o artigo exulta, sobre a capacidade humana de reverter a situação dos animais à beira da extinção. Os esforços de preservação, no contexto do cativeiro, foram feitos maioritariamente para as espécies de animais mais carismáticas, recorda Palmeirim.

“Estamos a esquecer que terá havido simultaneamente o desaparecimento de muitas espécies discretas que podem nem sequer ter sido descritas pela ciência”, argumenta o especialista, referindo-se a animais como os artrópodes e os gastrópodes, cujas condições de preservação poderão representar novos desafios.

Onde está o financiamento?

Um bom exemplo é o que se passa com o buzio-d'ôbô (Archachatina bicarinata), um caracol tropical endémico de São Tomé e Príncipe que há décadas tem vindo a sofrer uma grande diminuição dos seus números. Um dos factores para essa queda foi a introdução de um caracol exótico no país. Mas há também a suspeita de que algum tipo de agente patogénico possa estar a matar o caracol. Neste momento, o buzio-d’ôbô está em perigo de extinção, de acordo com a Lista Vermelha das espécies, e habita apenas as regiões mais remotas das florestas das ilhas de Príncipe e de São Tomé.

A investigadora Martina Panisi, uma estudante de doutoramento orientada por Jorge Palmeirim que está a investigar a espécie, tentou sem sucesso manter uma população do gastrópode em cativeiro. “Os esforços preliminares que foram feitos por ela falharam. Provavelmente não conseguimos controlar os organismos patogénicos”, sugere o biólogo.

Este tipo de desafio mostra que há um risco quando se começa demasiado tarde a tentar criar em cativeiro uma espécie à beira da extinção. O caso da tartaruga-gigante Lonesome George é um exemplo extremo dessa situação. Por isso, para o biólogo português é necessário “assumir um esforço de conservação destas espécies de uma forma mais científica, que não procure apenas as espécies carismáticas”. Ao mesmo tempo “não se deve desistir da preservação do habitat das espécies”, recorda. Sem o habitat, as espécies não têm para onde retornar.

Como é que essa conservação poderá ser feita dependerá muito de cada espécie. Mas um esforço internacional poderá fazer sentido em muitos casos. “Algumas vezes será apropriado um forte consórcio internacional para liderar projectos de conservação em cativeiro e outras vezes deverá ser uma liderança local que pode escolher, ou não, um apoio internacional”, defende John Ewen.

Para tudo isto terá de haver financiamento, argumenta por sua vez Maria Amélia Martins-Loução, bióloga e presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia, que também não esteve envolvida no artigo da Science. “Acho importantíssimo o levantamento destes problemas para que as instituições e os governos percebam que não é só uma questão de alterações climáticas, mas de todo o património natural que deve ser conservado e respeitado”, diz a bióloga ao PÚBLICO. “Cada região deve ser responsável pela conservação das suas espécies. Isso é importantíssimo de se reconhecer e de se interiorizar, mas é difícil porque o dinheiro não dá para tudo e acaba por ir mais para umas coisas do que para outras.”

A especialista em conservação de plantas observa uma falha nos recursos alocados às instituições que impede haver uma monitorização regular do estado de conservação da flora. “As pessoas não podem sair para o campo sem verbas”, alerta Maria Amélia Martins-Loução.

A bióloga dá como exemplo o banco de sementes A.L. Belo Correia, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. “Quando deixei a gestão do banco de sementes em 2016, tinha sementes de cerca de 56% da flora ameaçada de Portugal continental”, refere. Apesar de haver uma manutenção daquele equipamento, “não houve mais nenhum esforço para aumentar essa conservação, isso é uma pena”, lamenta.

Jorge Palmeirim tem esperança de que, com o novo acordo feito em Dezembro último na 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica (COP15), em Montreal, no Canadá, “haja mais disponibilidade para conservar as espécies”.

Esse financiamento será necessário. Estima-se que desde 1970 as populações de animais selvagens da Terra diminuíram em 69%. As alterações climáticas e a degradação dos habitats tendem a pressionar cada vez mais as espécies, principalmente no Sul Global, onde se mantêm as maiores bolsas de biodiversidade, e nas ilhas, que são territórios exíguos. Não será por isso uma surpresa se mais animais e plantas passarem pelo mesmo que a pomba-de-socorro passou.

No entanto, John Ewen acredita “em absoluto” que há recursos para se salvar e reintroduzir as espécies extintas na natureza. “Mas necessitamos de ter indivíduos, organizações e governos mais conscientes da situação difícil destas espécies. Elas estão absolutamente dependentes das escolhas que fizermos”, afirma. “A forma como a humanidade escolhe engajar-se com a natureza, protegê-la, ou adaptar-se para conseguir acomodá-la melhor, irá determinar o destino de muitas espécies.”