Quem quer um imposto sobre a riqueza?

A situação tornou-se preocupante ao ponto da própria elite reconhecer o exagero do seu privilégio e a necessidade de alterar um sistema que os favorece desmesuradamente.

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Com o fosso entre ricos e pobres num pico histórico, o que dizer da sua coexistência com a actual crise de custo de vida em países como Portugal? Unsplash

Num espaço de poucos séculos, o fenómeno da escassez como problema central da economia deu palco a outro, menos óbvio, mas mais complexo: a distribuição. A economia de mercado, capaz de criar enormes quantidades de riqueza, revelou-se incapaz de a redistribuir com a mesma eficácia. A generalizada falta de acesso a bens e serviços tão fundamentais como habitação digna, cuidados mínimos de saúde e educação ou infra-estruturas essenciais são sintomas de uma sociedade presa a ciclos de perpetuação de riqueza, que vão tornando a mobilidade social num acontecimento esporádico individualizado, e não no movimento de natureza estrutural que devia ser.

No seu mais recente relatório, a OXFAM assinala que 1% dos indivíduos mais ricos do mundo se apropriaram de dois terços da riqueza total gerada entre 2020 e 2021, com o restante terço a ser divido pelos restantes 99%. Adicionalmente, os 10% mais ricos conseguem uns incríveis 90% de riqueza total gerada nestes dois anos pandémicos, o que implica que a avassaladora maioria da população mundial divide 10% do bolo da riqueza; com grande parte da riqueza criada algures entre a América do Norte, a Europa e a Austrália, este desequilíbrio na distribuição de riqueza acentua-se ainda mais nos países do sul global.

A desigualdade é, assim, um enorme embaraço do capitalismo moderno; uma espécie de pedra no sapato de um sistema que, segundo muitos, tem o mérito de quase sempre se conseguir auto-resolver. O preço a pagar dos níveis astronómicos de riqueza material que conseguimos produzir é a contingência de não a conseguirmos distribuir adequadamente.

A evolução histórica deste fenómeno mostra-nos onde se encontram as grandes falhas do capitalismo, e expõe também algumas pistas sobre como o podemos corrigir. Uma grande parte da diminuição da desigualdade ao longo do século XIX deve-se à modernização dos sistemas fiscais: primeiro, com a introdução de novos impostos sobre ganhos de capital e certas formas de riqueza; segundo, pela universalização de sistemas fiscais progressivos. A progressividade fiscal implica, simplesmente, que os mais ricos paguem não só um maior valor absoluto de impostos como também uma maior percentagem dos seus rendimentos. Os primeiros sistemas fiscais progressivos de larga escala começaram a ser desenvolvidos tanto nos EUA como na Europa durante os finais do século XIX e inícios do século XX.

Segundo dados da World Inequality Database, nos EUA o topo dos mais ricos detinha, no início da década de 1930, perto de 45% da riqueza total produzida naquele país. À entrada de 1980, este valor tinha descido para 21%, o valor mais baixo registado na história. Sem surpresas, a taxa efectiva de imposto durante grande parte do século XX nos Estados Unidos foi elevada, chegando mesmo a ser perto de 94% em plena Segunda Guerra Mundial, o que muito contribuiu para a correcção da desigualdade durante grande parte desse século. Nos anos 80, na sequência de fortes anos de inflação e deficits alargados, uma nova vaga de liberalismo económico reduziu significativamente os impostos e iniciou-se assim uma nova viragem de ciclo, com o fosso entre mais ricos e mais pobres a voltar a aumentar, numa tendência que se manteve até aos dias de hoje, de forma mais ou menos transversal, entre a Europa e os Estados Unidos.

Com o fosso entre ricos e pobres num pico histórico, o que dizer da sua coexistência com a actual crise de custo de vida em países como Portugal? Talvez seja um sintoma de que as dinâmicas do mercado deixam vários problemas por resolver. Assim, sobra a esperança de algum intervencionismo para corrigir estas tendências, de acordo com as lições que a história já consagrou. Os reptos para se criar um novo imposto sobre o capital fazem-se ouvir já há vários anos.

Mais recentemente, numa coluna do jornal britânico The Guardian, o economista Joseph Stiglitz assinala a necessidade de se criar um novo imposto sobre as fortunas algures entre 2-3% — na linha da antiga candidata democrata Elizabeth Warren – e apoia a criação de um novo escalão máximo de impostos sobre o rendimento de 70% no Reino Unido. Em Davos, na cimeira onde se reuniu a elite económica mundial, vários multimilionários manifestaram o desejo de verem discutida a ideia de um imposto especial sobre a (sua própria) riqueza. A situação tornou-se preocupante ao ponto da própria elite reconhecer o exagero do seu privilégio e a necessidade de alterar um sistema que os favorece desmesuradamente.

Mas o capital é ágil e tem um grande ímpeto para procurar a forma de se tornar mais rentável. A criação de um imposto sobre a riqueza está por isso sujeita a fortes constrangimentos, começando pelos enormes recursos que estão disponíveis para os ultra-ricos fugirem aos impostos. Muitas destas estratégias estão largamente documentadas e são, genuinamente, difíceis de combater, em grande parte devido à mobilidade de capitais entre países. Assim, a discussão sobre impostos patrimoniais é um trabalho largamente cooperativo: quantos mais países aderirem a dito imposto, melhores tenderão a ser os resultados. Paralelamente, esforços desconcertados de criação de um imposto sobre o património podem muitas vezes levar ao escoamento de capitais para outros países, o que a prazo contribui apenas para a descapitalização da economia, com potenciais efeitos reais ao nível do emprego e da produção de riqueza. Adicionalmente, este efeito é agravado em economias mais pequenas e abertas ao exterior, como a portuguesa. Actualmente na Europa, apenas Espanha, Suíça, Noruega, França, Bélgica e Itália têm um qualquer tipo de imposto sobre a riqueza.

Construir soluções que vão contra os interesses de uma classe económica e politicamente dominante será sempre um desafio. Mas é precisamente para este equilíbrio de forças que existe o estado, cujos instrumentos e alcance serão sempre necessários para corrigir falhas de mercado que surgem com a assiduidade que lhes é reconhecida. E com a sua ajuda, talvez valha a pena recordar que a prosperidade e a desigualdade não têm necessariamente que andar de mãos dadas; a história revela-nos que, em alguns momentos, a criação e distribuição justa da riqueza pode ser mais do que um obscuro conceito teórico. Como sempre, basta criar os incentivos certos.

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