Inverno nuclear é um risco pouco conhecido e isso é um problema actual, diz inquérito

Muito falado no fim da Guerra Fria, o Inverno nuclear voltou a ser um cenário possível com a Guerra na Ucrânia. Mas inquérito no Reino Unido e nos EUA mostra que pessoas estão pouco cientes do risco.

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Um teste nuclear no atol de Enewatek, nas ilhas Marshall Reuters

Há quase um ano, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, iniciando uma guerra que prossegue sem fim à vista, o cenário de um conflito nuclear voltou a estar em cima da mesa na Europa, com todos os seus riscos. Um dos perigos deste tipo de situação é ocorrer uma escalada do uso de bombas nucleares, que poderá provocar um Inverno nuclear, acabando com a produção agrícola e levando à morte de milhões. Agora, um inquérito feito a cidadãos do Reino Unido e dos Estados Unidos mostrou que essa possibilidade, muito falada na década de 1980, está pouco presente na percepção dos entrevistados.

“Queríamos compreender melhor a percepção das pessoas dos riscos catastróficos globais associados às armas nucleares e que impacto essa percepção poderia ter no apoio que as pessoas dão a uma retaliação nuclear”, explicou ao PÚBLICO Paul Ingram, autor do inquérito Percepção pública do Inverno nuclear e implicações para o controlo da escalada, publicado nesta terça-feira pelo Centro para o Estudo do Risco Existencial da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, um centro dedicado à investigação e à mitigação de riscos que podem provocar o colapso da civilização e levar à extinção da espécie humana.

O Inverno nuclear é um conceito que ficou muito conhecido em 1983, quando foi publicado um artigo sobre este fenómeno assinado por vários cientistas, incluindo o famoso divulgador de ciência Carl Sagan (1934-1996). Na altura, tornou-se um tema muito debatido devido à Guerra Fria, quando se temia um conflito nuclear entre os Estados Unidos e a então União Soviética.

A hipótese é simples: no contexto de uma guerra nuclear, a partir de uma certa quantidade de bombas detonadas, a fuligem das explosões e dos incêndios subsequentes, que ascende à estratosfera, bloqueia a luz solar. Em teoria, o bloqueio pode ser suficientemente forte para baixar as temperaturas mundiais durante alguns anos, iniciando um Inverno nuclear e impedindo a produção agrícola. O resultado será uma fome generalizada, independentemente dos locais onde as bombas foram detonadas.

Dependendo da quantidade e da capacidade das bombas nucleares usadas, a intensidade daquele fenómeno amplia-se. Um artigo publicado na revista científica Nature Food, em Agosto de 2022, servia-se de modelos climáticos, modelos do comportamento de culturas agrícolas e de stocks de pesca para fazer estimativas da consequência de vários cenários de uma guerra nuclear.

Mesmo num confronto nuclear menor, onde fossem usadas 100 bombas nucleares pequenas (equivalentes à de Hiroxima, lançada na cidade japonesa em 1945), que provocariam 27 milhões de mortes directas, a letalidade devido à fome, ao fim de dois anos, seria de 225 milhões de mortos, de acordo com as estimativas do artigo. Ou seja, depois do horror das explosões e da radiação, surge um fenómeno demorado, mas muito mais devastador causado pelo Inverno nuclear. No caso de uma guerra nuclear total, onde são usadas 4400 armas nucleares mais poderosas, aos 400 milhões de mortes directas iriam somar-se mais 5000 milhões de mortes devido à falta de alimento.

Embora estes cenários sejam discutíveis e a própria hipótese do Inverno nuclear não tenha um consenso a nível da comunidade científica, o relatório defende que “estes números devem ser tratados como indicações da escala do impacto de uma guerra nuclear”.

Memórias da década de 1980

O inquérito entrevistou 3000 pessoas, metade nos Estados Unidos e a outra metade no Reino Unido. Uma das perguntas feitas para se avaliar o conhecimento que os inquiridos tinham do Inverno nuclear incidiu nas fontes de informação.

Ao todo, 3,2% dos entrevistados no Reino Unido disseram que tinham uma boa compreensão do fenómeno através de informação recente difundida pela comunicação social ou outro meio cultural, 1,2% dos entrevistados haviam sido informados através de estudos académicos recentes e 5,4% tinham memórias dos debates que aconteceram durante a década de 1980. No caso dos Estados Unidos, aquelas percentagens foram, respectivamente, de 7,6%, 5,2% e 9,1%. Ou seja, da pequena percentagem de inquiridos que estava mais bem informada, os debates sobre o Inverno nuclear da década de 1980 eram a mais importante fonte de informação.

“As ideias de um Inverno nuclear são predominantemente uma memória cultural, como se fosse uma coisa que ficou na história, e não um risco contemporâneo horrível”, alerta Paul Ingram, num comunicado da Universidade de Cambridge.

Depois, o inquérito abordou a posição dos entrevistados em relação à resposta que se deveria dar ao cenário hipotético de a Rússia lançar três bombas nucleares contra a Ucrânia, cada uma com potência equivalente à bomba de Hiroxima. Enquanto 84% dos entrevistados do Reino Unido e 77,9% dos inquiridos Estados Unidos defenderam sanções globais à Rússia, cerca de um quinto das pessoas dos dois países defenderam a retaliação com apoio de armas nucleares.

No entanto, quando as pessoas eram informadas anteriormente acerca do Inverno nuclear e dos seus efeitos, o apoio à retaliação com armas nucleares decrescia. “Descobrimos que o apoio era mais baixo em 16,1% nos EUA e em 12,9% no Reino Unido”, lê-se no relatório.

Estes resultados mostram a importância da informação para tomadas de decisão. “Se o público não está consciente dos perigos [do nuclear], pode estar mais disponível para apoiar políticas e compromissos que têm um risco para o futuro da própria humanidade”, adianta-nos Paul Ingram, que há mais de três décadas trabalha com grupos de reflexão do Reino Unido sobre as políticas relacionadas com as armas nucleares.

Um dos problemas de um conflito nuclear é que se prevê que seja muito difícil parar a escalada do confronto assim que a primeira bomba for lançada. “A dissuasão nuclear depende de as lideranças compreenderem as terríveis consequências que surgem devido ao uso do nuclear”, defende o especialista. “A elite política conhece [o problema] pouco mais do que o público. Mesmo a comunidade da defesa de onde venho tem uma compreensão limitada, uma situação que é exacerbada pela disputa científica sobre qual a escala necessária de confronto nuclear para provocar o Inverno nuclear. Os militares estão conscientes destas incertezas, mas preferem não se educar mais em relação à questão.”

Para Paul Ingram, são necessários mais estudos para reduzir a incerteza científica acerca deste fenómeno. Ao mesmo tempo, é importante alertar as pessoas para os perigos deste tipo de guerra: “Claro que é angustiante pensarmos em catástrofes de larga escala, mas as decisões têm de ter em conta todas as consequências possíveis para minimizar o risco.”

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