Acidente com comboio tóxico: habitantes aconselhados a beber água engarrafada

Um comboio com uma carga tóxica descarrilou há 11 dias na cidade de East Palestine, em Ohio (EUA), mas as dúvidas sobre o nível de contaminação no ar e no solo continuam a preocupar os moradores.

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Acidente em East Palestine, no Ohio (EUA) aconteceu há 11 dias mas as operações de limpeza dos produtos químicos (e tóxicos) continuam Rebecca Kiger/The Washington Post

Onze dias depois de um comboio descarrilar, derramando químicos tóxicos e causando um incêndio de grandes dimensões em East Palestino, no Ohio (EUA), as autoridades disseram aos residentes para utilizarem água engarrafada até que os testes pudessem confirmar se o abastecimento local de água era seguro para beber. O aviso aumentou a preocupação entre alguns habitantes locais que já receavam regressar às suas casas.

À medida que as perguntas continuaram a girar em torno da causa do acidente de 3 de Fevereiro e a resposta oficial ao mesmo, a lista de efeitos do desastre vai ficando mais completa e mais clara. As autoridades oficiais que gerem o abastecimento de água estão a seguir uma grande nuvem de contaminação que corre pelo rio Ohio. Cerca de 3500 peixes nos cursos de água locais foram mortos pela libertação de químicos; e as equipas de limpeza estão a escavar uma área "grosseiramente contaminada" de mais de 300 metros em redor dos carris do comboio onde o acrilato de butila se acumulou e onde o cloreto de vinila queimou.

"Neste momento, penso que água engarrafada é a resposta certa", disse o director de Saúde de Ohio Bruce Vanderhoff numa conferência de imprensa na terça-feira.

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Funcionários federais e locais garantiram que a qualidade do ar era segura e que o abastecimento de água não estava contaminado, mas moradores estão reticentes.

Reuters,Tiago Bernardo Lopes

"Estou a pensar em mudar-me para outro lugar"

Além de se interrogarem sobre a sua água potável, muitos residentes ponderaram as suas opções sobre um possível regresso a casa quando ainda sentem um forte odor a produtos químicos a pairar sobre a cidade. Alguns habitantes locais disseram que estão mesmo a considerar deixar a East Palestine e estão frustrados com o pouco que sabem sobre a sua potencial exposição a produtos químicos tóxicos.

Bodiah Cepin, de 21 anos, apareceu num centro de assistência local na terça-feira e disse ter passado algum tempo a pesquisar acrilato de 2-etilhexil, um dos químicos tóxicos que escapou do local do acidente.

"Estou a pensar em mudar-me para outro lugar porque sou jovem e levará anos a limpar isto", admite Bodiah Cepin, que saiu da cidade após o acidente e tem estado a viver com o seu pai nos arredores de Pittsburgh. "Mesmo uma diminuta quantidade de ethylhexyl pode ficar no solo durante anos.”

Um problema mecânico provavelmente fez descarrilar o comboio Norfolk Southern perto da fronteira de Ohio-Pensilvânia, disseram os investigadores federais, atingindo subitamente a pequena cidade com um incêndio carregado de poluentes, a ameaça de uma explosão e a libertação de pelo menos seis químicos tóxicos. Os funcionários enfrentam agora a tarefa de avaliar quanta contaminação se infiltrou nas superfícies, no solo e na água.

Na terça-feira, os funcionários do estado de Ohio concentraram-se em tranquilizar os residentes sobre a qualidade do ar em East Palestine garantindo que permanece seguro para respirar e que aqueles que saíram da cidade na semana passada podem voltar para as suas casas. Apesar da extensão da operação de limpeza que se avizinha, os funcionários indicaram que não se estava a verificar qualquer nova contaminação.

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Imagem desta terça-feira do local do acidente Rebecca Kiger/ The Washington Post

Químicos a descer o rio

A nuvem de químicos que desce o rio Ohio estará a ser diluída à medida que se move e não se espera que contamine qualquer água potável, referiu Tiffani Kavalec, chefe das águas superficiais da Agência de Protecção Ambiental do Ohio, numa conferência de imprensa. Além disso, os peixes já não estão a morrer, constatou Mary Mertz, directora do Departamento de Recursos Naturais do Ohio, defendendo que isso indica que não está a ocorrer uma nova contaminação para as águas locais.

Na terça-feira de manhã, a cidade de East Palestine estava sossegada, excepto pelo zumbido do equipamento industrial. No local do acidente, os trabalhadores de limpeza estavam a utilizar gruas e outra maquinaria pesada, a transportar chapas de metal à mão, e a transportar os destroços para os contentores de lixo - parando o seu trabalho sempre que um comboio passava.

"Por favor Reze por EP[East Palestine]", lia-se numa placa na Fábrica de Lacticínios, uma geladaria fechada.

O governador de Ohio, Mike DeWine (Republicano) disse aos repórteres que a empresa Norfolk Southern proprietária do comboio se tinha comprometido a pagar "por tudo" e assegurou que o Estado responsabilizaria a empresa ferroviária.

"O impacto nesta comunidade é enorme. Não apenas o problema físico que pode ter sido ser causado, mas o inconveniente, o terror", disse Mike DeWine. "Eu compreendo o cepticismo das pessoas e compreendo a sua raiva, e se eu vivesse na comunidade, também estaria zangado.”

O comboio não foi classificado como um comboio de transporte de um material de alto risco, explicou DeWine, o que significa que a companhia ferroviária não era obrigada a dar ao Estado qualquer notificação sobre a sua passagem. O governador exortou o Congresso a reexaminar os regulamentos dos comboios que transportam substâncias tóxicas, algo que alguns ambientalistas defendem há muito tempo.

O que escapou dos vagões?

A empresa Norfolk Southern disse segunda-feira que já pagou mais de um milhão de dólares (937 mil euros) aos residentes deslocados em "reembolsos e adiantamentos em dinheiro" para alojamento e outras despesas e está envolvida "em contactos e reuniões com as empresas locais afectadas". A empresa também doou dinheiro à Cruz Vermelha de Ohio e aos bombeiros locais.

Vinte vagões do comboio de 141 vagões transportavam materiais perigosos, 11 dos quais descarrilaram, informou o National Transportation Safety Board na terça-feira. Quando o comboio descarrilou, os investigadores federais e peritos em segurança química localizaram imediatamente um gás tóxico e altamente inflamável a ser transportado em cinco dos vagões: cloreto de vinila.

Com medo que os vagões explodissem, enviando estilhaços para os bairros, as autoridades decidiram que a melhor de "duas más opções" era libertar e queimar o cloreto de vinila, lembrou DeWine na terça-feira. Esta acção lançou gases perigosos, cloreto de hidrogénio e fosgénio, para o ar, mas terá sido capaz evitou uma explosão que DeWine referiu que, segundo os peritos, seria "catastrófica".

Há já vários dias que os habitantes da cidade perguntam o que mais terá vazado do comboio, mas a informação tem surgido lentamente. A Agência de Protecção Ambiental (EPA) dos EUA disse na semana passada que havia mais químicos tóxicos a bordo, o que a agência confirmou no domingo quando publicou uma lista facultada pela Norfolk Southern mostrando quais os vagões ferroviários que tinham sido destruídos.

Sopa tóxica

Cloreto de vinila e acrilato de butila foram os químicos primários libertados, avançou o porta-voz da Ohio EPA, James Lee, ao The Washington Post na terça-feira. Os outros incluíam éter monobutílico de etilenoglicol e acrilato de etil-hexilo.

Nem as agências governamentais nem a ferrovia detalharam que quantidade dos químicos foi libertada para o ar ou que quantidade foi derramada no solo.

"Eu não gostaria de ser exposto a nenhuma delas em quantidades significativas", disse Erik D. Olson, director estratégico sénior do Conselho de Defesa dos Recursos Naturais, um grupo de defesa do ambiente, num e-mail. "Todos eles representam perigos se inalados.”

O éter monobutílico de etilenoglicol, um líquido combustível que é utilizado comercialmente como solvente em lacas em spray e tinta látex e é também um ingrediente em diluente de tinta, pode causar irritação nos olhos e nariz, dores de cabeça e vómitos nas pessoas que forem expostas a estes produtos químicos em níveis elevados, de acordo com a Agência Federal de Registo de Substâncias Tóxicas e Doenças. Na lista dos caminhos-de-ferro, o estatuto deste produto químico está listado como "desconhecido".

A exposição a grandes quantidades dos outros três químicos, dois deles líquidos e um, o isobutileno, um gás inflamável, também é conhecida por causar dores de cabeça, náuseas e problemas respiratórios. O vagão que transportava isobutileno não foi danificado no acidente.

"Tudo isto criou de certa forma uma sopa tóxica", disse David Masur, director executivo do grupo de advocacia PennEnvironment. "É um pouco como um filme de ficção científica quando nos é dito que um dos subprodutos libertados é um agente que usámos contra os nossos inimigos na Primeira Guerra Mundial", acrescentou ele, referindo-se ao fosgénio.

Se o ar é agora seguro para respirar depende em grande parte de ainda estarem a ser libertados produtos químicos, defendem os especialistas. E uma vez que os residentes conseguem cheirar odores e relatar sintomas como dores de cabeça e náuseas, que são consistentes com o que alguns dos químicos podem desencadear, há muitos habitantes que permanecem inquietos.

A EPA garante que não foram detectados níveis de toxinas no ar, embora alguns peritos tenham lançado dúvidas sobre as medições iniciais, dizendo ao The Post que os testes deveriam ter sido mais robustos. Os funcionários na conferência de imprensa do governador disseram que os residentes deveriam confiar nos dados provenientes das autoridades.

Após o fim de um incêndio ou libertação de químicos, o ar acaba por se tornar limpo, disseram os peritos, e a principal preocupação muda para a eventual contaminação no solo ou que poderá ter entrado no solo. Os funcionários do Estado e da EPA disseram que os produtos químicos que estão a ser limpos podem emitir cheiros mesmo quando já dizem respeito a níveis que não são considerados perigosos de inalar.

"O que é realmente importante é que os funcionários governamentais estejam a monitorizar os níveis para se certificarem de que estão seguros e a comunicar claramente isso", sublinha a epidemiologista ambiental Lynn R. Goldman, reitora de saúde pública da Universidade George Washington e antiga funcionária da EPA. "Mas se eu estiver a sentir estes cheiros e eles me fizerem sentir mal, gostaria de estar noutro lugar.”

Na conferência de imprensa, os funcionários disseram que qualquer pessoa com sintomas deveria recorrer ao seu médico.

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REUTERS/NTSBGOV

O desastre onde "nada acontece" e a política

A 3 de Fevereiro, Travers e Tangie Mohrbacher viram fogo da sua varanda da frente, a uma milha e meia [2,4 km] do local do acidente. "Fiquei incrédula à medida que o fogo crescia", recordou Tangie Mohrbacher, 45 anos.

"Nada acontece aqui. É East Palestine, Ohio", acrescentou.

Mas, tal como muitas pequenas cidades americanas, esta aldeia tem carris de comboio que a atravessam e que têm bastante movimento.

Os defensores do ambiente há muito que alertam para os riscos dos comboios que transportam produtos químicos perigosos. Entretanto, alguns na ala direita do Partido Republicano têm usado o incidente para criticar a administração Biden e, em particular, o Secretário dos Transportes Pete Buttigieg.

"Outra falha nos transportes sob a liderança de Pete Buttigieg", tweetou o republicano Andy Biggs (do Arizona), um dos actores centrais no esforço para bloquear a proposta do republicano Kevin McCarthy para orador da Câmara.

J.D. Vance, o novo senador republicano de Ohio, divulgou uma declaração na segunda-feira levantando questões sobre a qualidade do sistema de travagem utilizado no comboio e a abordagem do Departamento de Transportes à regulamentação do sistema ferroviário.

O governador DeWine disse que o Presidente Biden tinha oferecido na semana passada assistência federal, mas que o estado não precisava de aceitar a oferta de Biden. A porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, disse aos jornalistas na terça-feira que a administração estava "em estreito contacto com os funcionários locais para garantir que eles têm o que precisam e que as suas necessidades estão a ser satisfeitas".

Pete Buttigieg reagiu na segunda-feira à noite. "Continuo preocupado com os impactos do descarrilamento do comboio de 3 de Fevereiro perto de East Palestine, no Ohio, e com os efeitos nas famílias nestes dez dias que já passaram desde que as suas vidas foram arruinadas sem culpa própria", escreveu ele no Twitter.

No centro da Palestina Oriental, Melissa James reabriu na terça-feira a sua loja, Manetta's Furniture & Décor, pela primeira vez desde o descarrilamento do comboio.

Ela partiu com o seu noivo Jared Clark e o seu filho, que sofre de distrofia miotrópica e é autista. Fugiram para um hotel durante vários dias, mas regressaram algumas vezes à cidade onde moram para comprar fármacos e outros artigos.

De pé fora da loja, Melissa e Clark, 45 anos, admitem que ainda não têm a certeza de que ficariam em East Palestine. "Ainda estou em estado de choque", disse James.

Os Mohrbachers, que saíram deste local com os seus filhos de 13 e 18 anos na altura do acidente, também estão de volta a casa, mas ainda inseguros quanto à segurança do regresso a casa, mas esperançosos.

"Temos confiança nos nossos funcionários eleitos e nas pessoas acima deles", disse Tangie, referindo-se aos líderes locais. "Achamos que é seguro ficar aqui até que nos digam para não o fazer.”

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