Os professores

Argumentar que se tem que tratar a carreira docente do mesmo modo que a carreira de técnico superior da administração pública é querer acabar com a carreira docente.

Os professores são não são técnicos superiores da administração pública nem servidores do Estado iguais a outros funcionários públicos. No nosso sistema constitucional, tendo em conta a Lei de Bases do Sistema Educativo e a natureza da profissão docente, a profissão de professor goza de autonomia pedagógica e científica e constitui a infraestrutura da democracia. Comparar a profissão de professor com a profissão de um técnico superior da direção geral dos impostos, de veterinária ou de uma divisão de planeamento urbano de uma câmara municipal é ignorância ou má-fé.

Uma educação pública de qualidade para todos constitui um mecanismo essencial à democracia. Desde logo porque garante as condições de um exercício de razão pública e valores fundamentais comuns no espaço público, sem o qual o debate, a adversidade e a comunidade democrática são impossíveis, entregues, de vez, à loucura comunicacional economicamente orientada. Sem uma escola pública qualificada, cultural e experiencialmente, a democracia soçobrará.

Mas não só. Uma escola pública qualificada, que ensine saberes culturais fundamentais e avançados e competências instrumentais flexíveis, é condição necessária da possibilidade de ascensão social e económica. Uma república de iguais exige que todos, independentemente das condições económicas e culturais da sua família, tenham acesso às mesmas possibilidades culturais e instrumentais, que lhes permitam aspirar a realizações pessoais, profissionais, sociais e económicas mais amplas. Sem essa esperança e essa realização, a democracia cairá em formalismos vazios e fracassará por falta de resultados.

Para que tal aconteça a escola pública precisa de profissionais com condições de trabalho, e competências, específicas. Daqui, aliás, a ideia de carreiras especiais da função pública, justamente porque as carreiras da função pública não são todas iguais. Argumentar que se tem que tratar a carreira docente do mesmo modo que a carreira de técnico superior da administração pública é querer acabar com a carreira docente.

Ora, a profissão de professor é de uma complexidade excecional, por várias razões. Primeiro, pelas razões macro já expendidas; segundo, porque a profissão de professor, partilhando embora com outras profissões públicas a responsabilidade primeira de agir tendo em conta o bem público (e não o bem governamental ou da chefia administrativa, dos diretores das escolas, por exemplo), não é uma profissão eminentemente técnica, no sentido em que as suas tecnologias (as tecnologias educativas) possam ser prescritas por padrões periciais estritos ou, sequer, as suas determinações eminentemente morais possam ser universalmente delimitadas, mesmo que dentro dos padrões constitucionais (desde logo porque as interpretações constitucionais são constitutivamente oscilantes).

A profissão de professor é, essencialmente, uma profissão moral, no sentido em que visa a edificação cultural e emocional das crianças e jovens, em cada momento concreto, com a infinita imprevisibilidade que isso acarreta; mas, por isso mesmo, é uma profissão irredutível a grandezas técnicas pré-estabelecidas. Daqui, aliás, a exigência de autonomia técnica e científica dos professores, já que, sem esta autonomia, não seria possível responder a cada uma das inumeráveis circunstâncias concretas com que cada professor tem que lidar, cada dia.

Esta autonomia é, bem entendido, o núcleo essencial da profissão de professor e é tanto uma enorme responsabilidade social como um enorme perigo. Os liberais radicais, tipicamente, querem acabar com a autonomia dos professores e substitui-la pela autonomia dos diretores das escolas. Preferencialmente privadas, mas que também podem ser públicas.

As responsabilidades científicas de cada professor são as primeiras a que cada professor tem que responder. O domínio do seu campo, ou disciplina, é uma obrigação estrita da sua profissão. A sintonização moral com os valores constitucionais de sobreposição constitui outra obrigação essencial, como já referido, pese embora a sua instabilidade. A utilização das melhores práticas, ou tecnologias, educativas, tendo em vista a transmissão de conhecimentos, práticas e valores não pode, por nada, ser descurada. A capacidade de sintonização com o tempo comunicacional e a cultura de fundo das relações sociais e culturais, sobretudo dos mais novos, é determinante na compreensão do melhor modo de agir pedagógico.

É fácil concluir, então, o quão difícil é ser professor. Os campos científicos evoluem a uma velocidade estonteante, contando-se em anos, e não décadas ou gerações, o ritmo de substituição ou correção dos saberes; as pressões e flutuações dos campos de valores constitucionais está à vista de toda a gente; a dificuldade de sintonização entre gerações e quadros culturais dominantes torna as técnicas pedagógicas quase risíveis; as alternativas tecnológicas à escola, de extração cultural e informativa, são infinitas; a reinterpretação, modulação e perturbação dos quadros valorativos e técnicos dos próprios professores, suscetíveis de melhorarem as suas práticas profissionais, são cada vez mais complexas e difíceis... Não, ser professor não é igual a ser engenheiro de uma direção-geral do Ministério das Obras Públicas e, por isso, não podem os dois ser tratados por igual (enquanto profissionais) ou ter carreiras tratadas por igual.

As principais condições para se ser professor são as de ter uma boa formação inicial, um bom estágio profissional, tempo para se preparar e cultivar pessoal e profissionalmente e um salário compatível com as exigências da sua profissão. Ora, hoje, os professores estão tempo a mais nas escolas, não têm tempo para ler e conectar-se com o mundo de modo tão especializado como a sua profissão requer e não têm um salário e uma carreira profissional à altura das suas necessidades e responsabilidades. Acresce a isto tudo que uma geração inteira de professores também não tem esperança num futuro pessoal digno, já que não tendo um salário justo, terão reformas miseráveis, estando condenados à pobreza. E ainda ninguém garantiu que o mesmo não acontecerá à geração seguinte.

A profissão de professor é a mais infraestrutural de todas as profissões. Desde logo porque a profissão de professor está a montante de todas as outras e as sustenta, não só nas suas perícias específicas mas também nos seus saberes democráticos e experienciais. Se a escola e os professores falharem a sua tarefa de edificação democrática, também falhará a democracia liberal tal como a conhecemos, dando espaço aos novos fenómenos de radicalismo social e político e às suas impensáveis consequências. Repita-se o que se sabe de há muito: a não ocorrer uma mudança estrutural da relação do Estado com os professores, construindo-se uma nova aliança do Estado com a Escola Pública e os professores - talvez aproveitando-se o impulso simbólico dos 50 anos do 25 de abril de 1974 - as coisas só irão piorar.

Sugerir correcção
Ler 4 comentários