Guardem essa empatia (2): Turquia e Síria

Nem sempre sei para onde levar os meus pensamentos, mas esta relação entre a humanidade, a história, as estórias, a notícia e a nossa empatia ou a falta dela, para mim, é o centro do universo.

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Voluntários abrem campas na cidade de Jandaris, na Síria MAHMOUD HASSANO/Reuters

Nós vimos os corpos esborrachados. Nós vimos um pai de mão dada à sua filha morta debaixo dos escombros. Nós vimos como tão rapidamente se perde tudo com um abanão das placas tectónicas. Nós vimos o sofrimento da guerra da Síria, nós vimos a miséria humana que têm vivido nos últimos 12 anos. Nós vimos demasiadas mortes a ser choradas até à última gota de amor, por parte de pais, mães e filhos que perderam os seus.

Nós vimos. Nós sentimos. Nós sentimos empatia. E a empatia é o sentimento mais potente que o ser humano pode ter. Empatia é amor pelo desconhecido. É humanidade desconstruída peça a peça. É nesse momento que retiramos os rótulos, os títulos, a cor de pele, a religião, e a nacionalidade... É nesse momento que percebemos que aquele mundo gigante de diferenças se transforma num espantoso nada. A empatia é a coisa mais bonita que podemos sentir, é o que nos agarra os pés à terra, é aquela voz que nos sussurra ao ouvido a dizer que a bondade tem de ser sempre maior que a maldade. Agora seguremos essa empatia. Agarremo-la bem. Não a percamos já. Guardemo-la num lugar seguro. Guardemo-la no lugar mais seguro do nosso coração.

Há anos que penso sobre este assunto. Nem sempre sei para onde levar os meus pensamentos, mas esta relação entre a humanidade, a história, as estórias, a notícia e a nossa empatia ou a falta dela, para mim, é o centro do universo. O ser humano enquanto animal pouco ou nada evoluiu desde que saiu do Vale do Rift nas montanhas da Etiópia. A relação entre a história e as estórias é complexa. É a história que nos ensina, é a história que nos explica o presente e aponta o caminho do futuro, mas por vezes nada nos diz sobre as estórias, ou sobre todas as estórias. E isso é muito injusto porque as estórias são as nossas vidas, e as vidas dos outros. A notícia é perversa. A notícia vive do entusiasmo, vive do medo, da extravagância, do espanto, do deslumbramento, mas também da empatia. A notícia conta apenas algumas estórias, e por isso conta mal a história. A notícia só sobrevive da alternância. A continuidade mata a notícia. E quando matamos a notícia, aos poucos deixamos morrer a empatia. E ao deixarmos morrer a empatia, a história e as estórias vão perdendo a humanidade. E nós não somos ninguém sem o outro, e por isso vamo-nos perdendo na imensidão de notícias que já não o são, e permitimos que a estória da nossa vida se faça apenas com pequenas doses de empatia, que não fazem história.

As preocupações humanitárias são algo de muito recente na nossa história. Estão ainda numa fase embrionária. A Cruz Vermelha foi fundada em 1863 para tentar tratar como pessoas as vítimas dos conflitos. A Carta Internacional dos Direitos Humanos é de 1948 e ainda não entrou nas nossas cabeças. Os Médicos Sem Fronteiras, a maior e mais antiga ONG médica do mundo, foi criada em 1971 com o intuito de oferecer cuidados médicos à proporção das necessidades, e ainda assim quão longe estamos de qualquer espécie de igualdade e justiça, há 50% da população mundial que não tem acesso a cuidados de saúde, e 25% não tem acesso a medicamentos essenciais. Um ser humano preocupar-se com a vida de outro ser humano que não conhece, de que não compreende a língua, que não se assemelha na cor ou na cultura, que não comunga da mesma religião, é algo que começou há um segundo, se olharmos para a história da humanidade como sendo 24 horas.

Permitam-me falar só da Síria sem qualquer desapreço pelos turcos; parece-me que os sírios precisam mais da nossa atenção humana. Na luta pela democracia e liberdade seguindo o rastilho da Primavera Árabe, a maioria do povo sírio revoltou-se contra o seu “querido” ditador, iniciando em Março de 2011 uma das mais brutais e mortíferas guerras civis dos nossos tempos. Mas depois a guerra continua e a notícia passa (é essa também uma das esperanças de Putin, que o Ocidente se canse). Depois, em 2014, um jornalista norte-americano é degolado em directo no YouTube, e ficamos a perceber quem era o Estado Islâmico, que causou também um novo enorme êxodo de milhões de refugiados da Síria. E como morreu um ocidental, e agora os sírios nos batiam à porta, voltou a ser notícia. A guerra e o extremismo islâmico continuaram, e estagnou por aí. Até hoje. Pelos piores motivos voltamos a “redescobrir” a guerra da Síria que tem estado sempre lá.

Tudo o que neste texto está a itálico foi escrito a 31 de Agosto de 2021, a propósito do que sofreu o povo afegão com o regresso dos taliban ao poder. O sofrimento do povo afegão continuou, mas a notícia não. Repeti o que tinha escrito, para que todos nos lembremos que o sofrimento vai para além da nossa atenção, e o quão desumano isso é.

E por isso te digo, por isso lhe digo: seguremos bem essa empatia, guardemo-la num lugar seguro. Um lugar onde conheçamos bem o caminho. Porque a notícia vai passar, as estórias vão deixar de nos aparecer, e a história vai continuar sedenta de humanidade.

Por todos os conflitos armados, por todas as pessoas que sofrem o inimaginável, por um mundo melhor, por amor ao próximo, e por amor-próprio, guardemos bem essa empatia.

É perversa a nossa relação entre empatia e notícia. Mas não precisa de o ser, se aproveitarmos este sofrimento colectivo para uma aprendizagem de que as notícias estão onde estará a nossa empatia, e não o seu contrário. Somos nós que “dizemos” aos media o que queremos ver.

É só escolher ver a humanidade.

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As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteira

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