Perante a falência da Livraria Cultura, editoras empacotam livros e esvaziam loja de São Paulo

Companhia das Letras e JBC estão entre as marcas que já deixaram a histórica livraria brasileira cuja falência foi decretada na quinta-feira. Outros editores, porém, reforçaram o stock.

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A Livraria Cultura de São Paulo em 2010 Paulo Fridman/Corbi/Getty Images

O cenário na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, a principal unidade daquele prestigiado grupo livreiro, passava na sexta-feira por várias prateleiras vazias e caixas de livros espalhadas.

Um dia depois de a Justiça decretar a falência da Cultura, algumas editoras começaram a recolher seus títulos — o receio é que, se as lojas da empresa forem lacradas, as editoras possam vir a ter dificuldades em reaver os seus stocks.

Entre as casas editoriais que foram buscar exemplares à livraria estão a JBC e a Companhia das Letras, que tinha um camião estacionado nas proximidades.

A Folha de S. Paulo apurou que o plano da Companhia das Letras era recolher 15 mil exemplares da loja. A editora teve de suspender igualmente os planos de inauguração de um espaço infantil, previsto também para sexta-feira.

Além da loja do Conjunto Nacional, a Cultura tem actualmente apenas mais uma livraria, em Porto Alegre (em 2014, eram 19).

Desde o anúncio da falência, na noite de quinta-feira, alguns editores chegaram a receber telefonemas de representantes da Livraria Cultura tentando tranquilizá-los. Caso a decisão da Justiça não seja revertida, transmitiram, os stocks serão colocados à disposição das editoras.

No Conjunto Nacional, alguns visitantes espiavam os títulos em busca de descontos, mas não havia sinal de nenhum saldão. Os vendedores da loja afirmavam que os livros que estavam nas estantes continuavam disponíveis para compra, sem data definida para encerramento da livraria.

Ao mesmo tempo, a Citadel e a Alta Books iam contra o movimento e inauguravam um espaço conjunto na loja.

"Enquanto tinha um pessoal tirando os livros, nós estávamos colocando", diz Marcial Conte, editor-chefe da Citadel. "Financeiramente não sei o que vai acontecer. Estaremos lá com dois mil livros. Se depois vai ser problema, se vão lacrar a loja, isso nosso departamento jurídico vai ver. Estamos olhando além das questões financeiras."

A falência da Cultura foi decretada pelo juiz Ralpho Waldo De Barros Monteiro Filho, da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.

Na sentença, o magistrado afirma que, apesar de reconhecer a importância da Livraria Cultura, o grupo não conseguiu superar sua crise económica. Segundo o juiz, o plano de recuperação judicial vinha sendo incumprido e a prestação de informações era incompleta.

"Foi tudo uma surpresa. Vamos recorrer da decisão", diz o CEO da Livraria Cultura, Sérgio Herz. "Eu confio totalmente na recuperação judicial da empresa. Estamos crescendo. Comparando a Janeiro do ano passado, a loja do Conjunto Nacional cresceu 60%. A de Porto Alegre, 15%. É um resultado bom."

Questionado sobre a recolha de livros na sua principal loja, Herz diz ser "óbvio que fica todo mundo nervoso". "Eles [os fornecedores] querem ter segurança. Temos fornecedores que estão mais assustados, e há outros que querem esperar [antes de recolher os livros]. Estamos trabalhando para reverter [a decisão da Justiça]", insistiu.

O pedido de recuperação judicial foi apresentado em 2018, depois de uma crise que se estendia. Na ocasião, a Livraria Cultura declarou ter dívidas de 285,4 milhões de reais (mais de 50 milhões de euros, ao câmbio actual).

Com a falência, a administradora judicial pode agora lacrar as lojas da empresa. Depois, os activos da Cultura serão inventariados e, em seguida, leiloados para pagar aos credores. Se a companhia recorrer, a Justiça pode suspender esse processo.

As editoras temem que com a falência, fique ainda mais improvável receber o pagamento das dívidas – isso porque os editores não entram no topo da lista de prioridades. Antes deles, por exemplo, vêm as dívidas relativas às remunerações dos trabalhadores.

Mas a decisão da Justiça não apanha as editoras de calças na mão, como o anúncio da recuperação judicial de 2018.

Com o início desse processo, algumas grandes casas pararam de fornecer directamente para a Cultura – ou passaram a manter stocks pequenos à consignação na livraria, com uma reposição cautelosa de acordo com as vendas. Em outros casos, os títulos estavam disponíveis por intermédio de distribuidores.

Vários editores relatam que não receberam os pagamentos pelas dívidas anteriores ao processo de recuperação judicial. Por isso, atribuiram um preço às perdas e tomaram precauções na relação com a livraria.

Além disso, as fontes de facturamento mudaram de perfil nos últimos anos.

"O varejo [venda à unidade] online ganhou uma relevância muito grande", diz Marcos Pereira, um dos sócios da Sextante. "Antes da pandemia, um terço das vendas era online, hoje acho que é meio/meio."

Para este editor, parte da crise da Cultura veio das dificuldades de adaptação às mudanças neste mercado.

"Eu acho que não é possível vender com os descontos que o varejo online pratica. Mas, para o varejo online, o livro não é o principal. A Cultura tentou competir no varejo online com os grandes varejistas, perdendo dinheiro no que era o seu principal produto, o livro."

No momento, a preocupação maior do sector prende-se com o processo de recuperação judicial das Lojas Americanas, um importante canal de comercialização de livros.

"O baque da Americanas é mais relevante. Parece livro de ficção que tem aquele plot twist", diz Sônia Jardim, do Grupo Record.

O pedido de recuperação da gigante do varejo apanhou o mercado livreiro tão de surpresa que houve quem tivesse de suspender o transporte de camiões de livros já a caminho da entrega.

Além da relevância da operação online da Americanas, a análise no mercado é que as lojas da empresa permitem o contacto com leitores que não necessariamente frequentam livrarias.

A varejista tem uma dívida de mais de 85 milhões de reais (15 milhões de euros) com pelo menos 76 editoras brasileiras, segundo a lista de credores entregue à 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro.

O maior credor entre os editores é a Somos Educação, a quem a Americanas deve 14,2 milhões de reais (2,5 milhões de euros). As dívidas com grupos como a Companhia das Letras e a Record são de 7,2 milhões e 6,8 milhões, respectivamente. No caso da Intrínseca, esse valor é 5,9 milhões. Já Sextante e Panini têm 5 milhões a receber cada uma.

Exclusivo PÚBLICO / Folha de S. Paulo

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