Um mundo volátil: o Ocidente e a protecção das democracias
Perante um sistema internacional consideravelmente fragmentado, cabe ao Ocidente moderado assumir-se tanto como referencial como produtor de estabilidade.
Nos últimos tempos o debate em torno da perduração da guerra em solo europeu, decorrente da criminosa invasão perpetrada pelo Kremlin, alargou-se ao problema da estabilidade das democracias ocidentais num cenário cada vez mais volátil. Como proteger os seus valores fundamentais? Ora, no presente quadro periclitante a reflexão sobre a evolução do xadrez externo requer uma comparação especialmente lúcida dos vários subsistemas internacionais.
Vejamos: o Ocidente político é em larga medida um espaço pacificado, fundado em códigos democráticos, no Estado de direito, eleições livres e na economia social de mercado. Caracteriza-se por uma elevada densidade institucional e normativa na qual a defesa e a promoção dos direitos humanos emergem como elementos nucleares. Tem subjacente uma ideia de contrato constitucional de direitos e de deveres sendo ainda definido por um elevado grau de secularização, isto é, um quadro legal onde existe uma separação funcional entre o Estado e a(s) igreja(s) – uma ideia salutar naquilo que tem a ver com o respeito pelas convicções religiosas de cada cidadão.
Por outro lado, o relacionamento entre estados demoliberais tem sido marcado pela ausência de conflitos armados entre si – a conhecida tese da paz democrática – ou seja, pela garantia de não recurso à guerra, aproximando-se tipologicamente de uma verdadeira comunidade de segurança. No subsistema ocidental emergiria mesmo uma nova realidade de tipo pós-vestefaliano como é o processo de integração europeia, constituindo a União Europeia a mais avançada construção política de cooperação internacional no mundo globalizado, combinando democracia representativa, instituições multilaterais e liberdade económica.
Em contraposição, o subsistema asiático reedita em grande medida a Europa da balança do poder do século XIX, onde o dilema de segurança é um factor central. Nesta macrorregião, tal como se verificava na Europa de oitocentos, a ideologia joga um papel marginal na determinação do estado das relações entre as principais potências. A probabilidade de conflito entre rivais estratégicos (China, Japão, as duas Coreias, Índia, Paquistão, Rússia, e não só) não é de todo uma impossibilidade, alimentada por significativos focos de tensão e factores de instabilidade – casos mais prementes da península coreana, de Taiwan, e dos mares do sudeste asiático.
De notar, que os Estados Unidos enquanto única potência verdadeiramente global são também uma potência asiática funcionando como o balancer-chave no tabuleiro geoestratégico do Indo-Pacífico. Constata-se que este subsistema internacional mostra uma baixa densidade em termos de organizações regionais, o mesmo se pode dizer no que respeita a ligações institucionais ou à inexistência de fora de diálogo relevantes entre os países dele integrantes.
Por seu turno, o Grande Médio Oriente – que vai geograficamente da Mauritânia ao Afeganistão – é um subsistema caracterizado por uma grande instabilidade e, talvez, por uma ainda maior volatilidade política. Acresce que nesta macrorregião os conflitos continuam a ser “justificados” numa medida considerável por motivações de ordem religiosa. Com efeito, a utilização da religião como instrumento e razão ostensiva para as políticas externas e de segurança tem que ser considerada.
Dada a preponderância da religião na explicação das dinâmicas políticas, falamos de padrões pré-vestefalianos. Referimo-nos em especial ao conflito israelo-palestiniano sem fim à vista, mas também às divergências extremadas no seio do próprio Islão entre sunitas e xiitas. Os imensos recursos e as questões energéticas, tal como a sua localização estratégica-chave, potenciam a extrema sensibilidade e volatilidade políticas de toda a macrorregião do Médio Oriente, espaço onde a Arábia Saudita, o Irão e a Turquia assumem novas ambições e protagonismo.
Deve ainda referir-se que este subsistema inclui um número significativo de estados com elevados índices de fragmentação e de divisão interna. Também este subsistema internacional revela uma escassa densidade em termos de instituições regionais entre os países desta região do globo.
Por último, o subsistema africano – ou mais precisamente subsaariano – configura um cenário de acentuadas dificuldades na construção dos estados pós-coloniais, marcado ainda por instabilidade política endémica e desvios institucionais. Numa grande parte destes países existe uma significativa atomização étnica e não raras vezes também religiosa. O conceito de “Estado inacabado” consagra talvez a imagem teórica mais interessante na caracterização dos dilemas contemporâneos dos Estados na África subsaariana.
Concluindo, em África, no Médio Oriente, na Ásia e no mundo ocidental as práticas políticas diferem entre si em termos das suas características, dinâmicas, regras e expectativas. Estamos, pois, perante um sistema internacional consideravelmente fragmentado, onde o Ocidente moderado deve assumir-se tanto como referencial como produtor de estabilidade. Neste plano específico coloca-se hoje a questão – que não é legítimo ignorar – de saber como irá evoluir o modelo de estabilidade de raiz ocidental protagonizado pelos Estados Unidos e pelos seus aliados, e que tem, para todos os efeitos, assegurado a liberdade de comércio e de navegação nos últimos setenta e oito anos.