Cheira bem, cheira a Lisboa

A leitora Maria Goreti Catorze canta uma ode a Lisboa, cidade de flores e de histórias.

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Maria Goreti Catorze

Tinha saudades da chuva, tem um som musical, é purificadora, transporta consigo a paz interior de podermos desfrutar do próximo Verão sem o medo nem os remorsos da seca iminente.

Já Lisboa não foi feita para ser apreciada em dias cinzentos e húmidos. Apesar de ribeirinha e atlântica, precisa de sol para brilhar. É dele que vem a luz que a popularizou junto dos turistas estrangeiros. Perde beleza  (ou a beleza...) nos dias escuros de inverno. Não que seja uma cidade de manhãs claras, pelo contrário, demora a despertar e a desvanecer a neblina matinal que sobe do Tejo e se espraia por ali, modorrenta, à espera do meio-dia para se despedir devagar.

Em dias de chuva forte é melhor procurar as zonas elevadas das colinas porque mal cai uma bátega pesada logo as ruas baixas se transformam em rios.  O maremoto de 1755 foi o corolário dessa má relação de Lisboa com a água. José Saramago descreve bem os contratempos da chuva na Lisboa de 1936 quando Ricardo Reis chega do Brasil e atravessa o Cais do Sodré alagado sob chuva torrencial para se instalar no hotel Bragança, ao fundo da rua do Alecrim. Previno, pois, os novos visitantes (os velhos já o sabem…): Lisboa, para ser completamente bela (o que é possível...), tem de ser contemplada nos meses de Maio, Junho ou Julho. É quando os jacarandás florescem e embelezam as ruas com as suas copas lilases e os seus tapetes cor de anil. Mais tarde, ou quase em simultâneo, chegam as flores amarelas das tipuanas. Também há o rosa das albizias e o vermelho das eritrinas candelabro. 

Deixemos, pois, passar a chuva e aguardemos, porque como já perceberam esta também é uma cidade de flores. Há-de chegar outro Abril com cheiro a cravos, Maio coberto de jacarandás, Junho perfumado de manjerico e Julho pintado com o amarelo das acácias.

Nessa altura apanhemos os eléctricos 15 ou 18 e atravessemos a Avenida 24 de Julho para olhar as primeiras flores do jacarandá no passeio ao fundo das escadas que descem do Museu de Arte Antiga. Continuemos a admirá-los no separador central da avenida até ao Cais do Sodré, olhando a mancha colorida da Avenida D. Carlos, e cheguemos ao Rossio para perceber como fica deslumbrante assim florido.

Ponho-me a imaginar a praça no tempo de D. Manuel I, com o Hospital Real de Todos os Santos a este, do lado do castelo de São Jorge, o convento e a igreja de São Domingos (ainda lá está), palco de tantas desgraças e infortúnios: o massacre dos judeus em 1506, o incêndio no dia do terramoto (1 de Novembro de 1755), o casamento de D. Pedro V com a rainha D. Estefânia (1858) que viria a falecer meses depois vítima de difteria ou da maldição da tiara de flores. Diz a lenda que a usou nesse dia em substituição da tiara de diamantes que, de tão pesada, lhe feriu a testa. Foi quando o povo gritou «a rainha vai amortalhada!». A tiara valiosa perdeu-se para sempre (soube-se recentemente que foi desmontada e vendida peça a peça… não vale a pena procurarem-na no Museu do Tesouro Real da Ajuda).

No topo norte do Rossio ergue-se o Teatro Nacional D. Maria II, local onde antes esteve o Palácio de Estaus, tribunal da Inquisição.  No centro eram os autos-de-fé. Foi lá que a Blimunda encontrou Baltazar. Quem leu o Memorial do Convento não o terá esquecido.

Lisboa tem o fascínio da sua longa história. Torna-se "cidade global" em 1500, uma das cidades mais comerciais do mundo, e desagua na "Nova Lisboa" multicultural que o Dino d' Santiago tão bem canta.  Teve momentos bons e outros maus mas uma coisa é certa: com tantas flores nos cabelos, continua a cheirar bem e a ser menina e moça.  Esperemos que sem maldições.

Maria Goreti Catorze

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