TC declara eutanásia novamente inconstitucional devido a “intolerável indefinição” do conceito de sofrimento

Presidente pediu aos juízes que analisem se o conceito de doença grave e incurável se enquadra nos padrões constitucionais da inviolabilidade da vida humana. Marcelo já devolveu decreto à AR.

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É a segunda vez que a lei da eutanásia é apreciada pelos juízes do Tribunal Constitucional. Nuno Ferreira Santos

À segunda vez, o Tribunal Constitucional (TC) voltou a declarar inconstitucional regras do regime da despenalização da morte medicamente assistida por causa de um conceito: o de “sofrimento de grande intensidade” que afecta o doente que pede acesso à eutanásia. Os juízes consideram que o Parlamento criou uma "intolerável indefinição" sobre o "exacto âmbito de aplicação da nova lei" porque o texto não explicita se as três características de sofrimento - "físico, psicológico e espiritual" – devem ser lidas cumulativamente ou podem ser interpretadas de forma individual.

A decisão foi tomada por uma maioria de sete juízes contra seis e o Presidente da República já anunciou a devolução, de novo, do diploma à Assembleia da República sem promulgação.

Por arrasto da declaração de inconstitucionalidade da aplicação do conceito de sofrimento, foram também “chumbados” os artigos do decreto que estipulavam as regras para os pareceres (obrigatórios) do médico orientador, do médico especialista e do psiquiatra.

O TC considerou, no entanto, constitucionais os conceitos de “doença grave e incurável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema”, que são critérios para averiguar da pertinência do pedido de acesso à eutanásia. No caso do primeiro, Marcelo Rebelo de Sousa queria saber se o tribunal admitia que o conceito de doença deixasse de incluir a palavra “fatal”, como acontecia na versão original de 2021. A segunda versão aprovada no Parlamento, em Novembro de 2021, foi vetada pelo Presidente que, na altura, assinalou a ausência do conceito de “doença fatal” por comparação com o primeiro texto. Marcelo chegou mesmo a considerar que a Assembleia da República “escolheu a versão mais ampla, mais liberal da morte medicamente assistida”.

O que está em causa neste conceito? Diz o decreto que sofrimento de grande intensidade é “o sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa” que pretende pedir a morte medicamente assistida.

O tribunal considera que, ao caracterizar a tipologia de sofrimento nas suas três valências de "físico, psicológico e espiritual", a lei acaba por deixar a dúvida sobre duas "interpretações antagónicas": para que o doente possa pedir acesso à eutanásia é preciso que o doente tenha que cumprir os três critérios de sofrimento (a interpretação cumulativa) ou apenas um deles (a interpretação alternativa)?

Por isso, os juízes dizem que cabe ao Parlamento agora “clarificar (…) se a exigência é cumulativa (sofrimento físico, mais sofrimento psicológico, mais sofrimento espiritual) ou alternativa (tanto o sofrimento físico, como o psicológico, como o espiritual)".

Todos os sentidos de sofrimento ou só um?

Argumentam que, se se considerar que é cumulativa, significa que a lei passa a "reservar o acesso à morte medicamente assistida apenas a pessoas que, em virtude de lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, relatem um sofrimento de grande intensidade que corresponda cumulativamente às tipologias de sofrimento físico, psicológico e espiritual". Se se fizer a interpretação alternativa, a lei passa a "garantir o acesso à morte medicamente assistida a todas as pessoas que, em consequência de uma das mencionadas situações clínicas, sofram intensamente, seja qual for a tipologia do sofrimento".

O presidente do Tribunal Constitucional, João Caupers, que leu o comunicado sobre o acórdão, deu até um exemplo. "Em termos práticos, e a título meramente exemplificativo, ​está em causa saber se um doente a quem tenha sido diagnosticado um cancro com um prognóstico de esperança de vida muito limitada, ou um doente que padeça de esclerose lateral amiotrófica que não tenham sofrimento físico (vulgarmente entendido como dor) têm ou não acesso à morte medicamente assistida não punível."

O tribunal admite que o Parlamento se esforçou para densificar e clarificar alguns conceitos usados na versão declarada inconstitucional em 2021. E lembra que, há quase dois anos, no primeiro acórdão em que considerou o decreto inconstitucional, considerou que "o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias e que as condições em que é legalmente admissível a morte medicamente assistida têm de ser 'claras, antecipáveis e controláveis'". Cabe à AR agora definir tais condições "de modo seguro para todos os intervenientes".

PS aliviado, PSD quer referendo

O “chumbo” foi recebido pelo PS com algum alívio: afinal, não foi posto em causa nem o direito a morrer, nem os conceitos de doença grave e incurável ou de antecipação da morte, mas apenas “uma palavra”: a conjunção ‘e’ nos requisitos relativos ao sofrimento do requerente.​

"Foi por um voto e por uma palavra", realçou a deputada Isabel Moreira, relatora do texto final aprovado no Parlamento em Dezembro. A constitucionalidade da morte medicamente assistida já está só presa por uma questão de "semântica", diz a socialista que defende que "está encerrada de uma vez por todas a questão de se saber se a eutanásia é inconstitucional em si mesma".

"Para nós 'e' significa 'e' e não 'ou'. Mas cá estaremos para dissipar qualquer dúvida e penso que estão criadas as condições para o diploma seguir limpo e com esta última dúvida do TC resolvida", acrescentou, prometendo que tentará que a nova votação seja "o mais rápido possível".

Já Luís Montenegro, presidente do PSD, anunciou no Twitter que o partido vai voltar a propor, em Setembro, a realização de um referendo sobre a legalização da morte medicamente assistida.

"O PSD tem razão. Basta de teimosia. A discussão da eutanásia deve sair das quatro paredes do Parlamento e ser alvo de um referendo", escreveu o líder social-democrata naquela rede social mal se soube da decisão dos juízes do Palácio Ratton. "A democracia directa é o espaço de uma discussão profunda e de uma decisão segura, visto que a pergunta tem de ser aprovada previamente pelo TC."

Terceira versão, segundo chumbo

Esta foi a segunda vez que os juízes do Palácio Ratton foram chamados pelo Presidente da República a analisar preventivamente o decreto da Assembleia da República que legaliza a prática da eutanásia. Em Março de 2021, o Tribunal Constitucional considerou “excessivamente indeterminado” o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema que também tinha causado dúvidas ao chefe de Estado.

Nessa altura, apesar de o pedido de fiscalização preventiva da lei feito pelo Presidente da República não ter versado sobre a questão da inviolabilidade da vida humana, os juízes decidiram apreciá-la e concluíram que o art.º 24.º n.º 1 da Constituição “não constitui obstáculo inultrapassável”. Ou seja, abriram a porta a que a Assembleia da República legislasse sobre a matéria, mas pediram leis “claras, precisas, antecipáveis e controláveis”.

Foi isso que os deputados do PS, Bloco, PAN e IL tentaram fazer ainda na legislatura passada, quando a Assembleia da República tinha já data de dissolução prevista. Marcelo Rebelo de Sousa voltou a vetar o decreto, desta vez um veto político, alegando que a nova versão alargava o leque das situações abrangidas pela morte medicamente assistida porque deixava cair a exigência de uma “doença incurável e fatal”. O Parlamento “escolheu a versão mais ampla, mais liberal da morte medicamente assistida”, apontou então o Presidente.

Esta terceira versão foi aprovada em Dezembro no Parlamento a partir de um texto comum elaborado pelo PS com base também nas propostas do Bloco, PS, IL e PAN. Os deputados reformularam alguns conceitos, introduziram a possibilidade de acompanhamento psicológico ao longo do processo e prazos para as suas várias fases, incluindo um mínimo de dois meses entre o pedido de acesso à eutanásia e a concretização da morte, mas continuaram a bater o pé a Marcelo e não incluíram a exigência de doença fatal.

Para além das dúvidas sobre a reformulação dos conceitos, Marcelo também procurou o respaldo do TC porque um simples veto político e a devolução do diploma ao Parlamento permitiriam, caso o PS quisesse, que o texto acabasse por ser confirmado, já que o partido dispõe de maioria absoluta. Isso mesmo aconteceu a Cavaco Silva com o seu veto à adopção por casais do mesmo sexo em 2016, quando a esquerda se uniu para reconfirmar o diploma.

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