A música de Lamin Fofana movimenta-se entre diásporas e os derrames da história

O artista da Serra Leoa apresenta o concerto-performance Shafts of Sunlight esta sexta-feira no Palácio dos Correios, no Porto. A entrada é gratuita.

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Música de Lamin Fofana reimagina as heranças culturais da diáspora africana ink agop

Lamin Fofana cumpre na prática aquilo que na teoria parece uma missão impossível – ou, pelo menos, uma missão que ficaria sempre incompleta, sempre aquém. Transmuta para a música, para o som, os escritos de pensadores negros como Édouard Glissant, W.E.B. Du Bois, Sylvia Winter, Fred Moten, Amiri Baraka, Saidiya Hartman ou Kamau Brathwaite, em movimentações electrónicas exploratórias e contemplativas, sem palavras, mas pregnantes na sua abstracção, pela potência narrativa, visual, histórica que fazem desabrochar e adensar.

O artista e músico nascido na Serra Leoa reimagina e articula os trânsitos coloniais e as histórias de resistência anticoloniais, os movimentos geográficos e as heranças culturais da diáspora africana, os sentimentos de pertença e de deslocamento tão do passado quanto do presente – não fosse o colonialismo um unfinished business, não fosse o tráfico negreiro um trauma histórico que deixou derrames impossíveis de estancar, não fossem as migrações forçadas um assunto intemporal, não fosse ele próprio um peão nesta história toda, um refugiado da guerra civil da Serra Leoa.

Tudo isto estará a rodopiar no concerto-performance Shafts of Sunlight, que Lamin Fofana apresenta esta sexta-feira, às 19h, no Palácio dos Correios, no Porto, no âmbito da programação da Galeria Municipal (a entrada é livre mediante a lotação da sala).

Fofana diz ao PÚBLICO que surgiu de modo “inesperado” a sua prática de transpor e “esticar” palavras, ideias e pensamentos de escritores da negritude. É, no entanto, “auto-explicativa”. “A instabilidade, a brutalidade e a exploração de populações vulneráveis, a luta do dia-a-dia e todas as ansiedades do mundo contemporâneo estão conectadas com processos e forças históricas que ainda continuam a desintegrar e fragmentar as nossas vidas.” A aprendizagem, assinala, veio de ouvir e ler historiadores e poetas. Ouvir “atentamente”, ler “sem pressas”.

“Estou constantemente a voltar a certos escritores, a revirar coisas, a experimentar com sons – a fragmentação que referi talvez se manifeste numa espécie de arpejo.” Esta ideia de fragmentação reflecte-se não só no derruir do tempo e de fronteiras territoriais e afectivas, mas também em paisagens sonoras multirreferenciais, em que o músico recontextualiza várias heranças musicais da negritude, entre ecos e vestígios. Ter crescido em Freetown, capital da Serra Leoa, ajudou a moldar esta sua abordagem ao som e ao acto de ouvir.

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“Estou constantemente a voltar a certos escritores, a revirar coisas, a experimentar com sons" Isabel O'Toole

“Estava permanentemente rodeado por uma mistura rica e cacofónica de sons e estilos vindos das vivências diaspóricas africanas pelo mundo”, recorda. “Ouvia o afropop do mbalax senegalês e do zouk haitiano; o soukous congolês e o reggae e o dancehall jamaicanos; o hip-hop americano, entre r&b, techno e house.” O techno dos pioneiros de Detroit – Drexciya, Carl Craig, The Belleville Three, Underground Resistance foi um dos pontos de partida do trabalho de Lamin Fofana, que se estabeleceu em Nova Iorque depois de ter fugido da Serra Leoa. Uma herança que deu corpo ao EP Another World, de 2015, e que volta a ecoar em Here Lies Universality, um dos muitos discos que lançou durante o ano passado.

“O techno é mais do que um dispositivo; é algo necessário para a sobrevivência e para a transcendência.” E, acrescenta, está umbilicalmente ligado à abstracção e à experimentação, dois dos principais vectores da sua prática sonora. “O techno e a música negra emergem, no geral, de momentos de elevada curiosidade e experimentação, quando os nossos encontros com o mundo já não são passíveis de serem explicados pelo pensamento ortodoxo. O contexto força-nos a experimentar e a criar novos conceitos que nos ajudem a imaginar outros modos de existir.” Como diria o escritor e investigador nigeriano Louis-Chude Sokei, “novas vidas anunciam-se sempre através do som (...) a história é generosa, é uma maneira de ouvir”.

Amílcar Cabral e “sonhar em dissonância”

No caso dos Drexciya, o oceano era ponto nevrálgico para a sua música, pegando no genocídio do tráfico negreiro transatlântico para o ressignificar numa experiência afro-futurista. No caso de Lamin Fofana, o oceano é também o lugar-berço, o lugar-propulsor, o lugar da não-linearidade do tempo, da geografia e da história a partir do qual é possível traçar relações entre colonialismo, capitalismo e movimentos migratórios, como o fizeram muitos dos seus pensadores de referência. Território também ele fragmentado que se traduz, na sua música, numa vibração aquática, cambiante e meditativa, capaz de se estender por quilómetros e quilómetros – como ouvimos em The Open Boat, Unsettling Scores e Shafts of Sunlight, três discos de 2022, que podem ser conectados com a exposição Dark Waters, na Tate Liverpool (até Junho), onde Fofana dialoga com o pintor romântico inglês Joseph Mallord William Turner (1775-1851).

“Estou interessado em criar trabalhos em torno de certas histórias de migração e movimentação de pessoas de várias paisagens terrenas e marítimas, e sobrepor essas experiências”, explica o artista, actualmente a residir entre Nova Iorque e Berlim. “Vivemos num planeta composto sobretudo por água. Penso naquilo que Kamau Brathwaite disse a Nathaniel Mackey: ‘Somos assombrados pela ideia de que ali há mais. As baleias habitam a minha imaginação. Debaixo do solo e debaixo de água há formas de existência mais amplas que têm uma ressonância tão profunda, e nós ainda não as alcançamos.’”

As “políticas do oceano” conduzem também a reflexões sobre as alterações climáticas, assunto que Lamin Fofana explora em Unsettling Scores. “Quando criei este álbum, estava a pensar sobre a falta de acção para tentar proteger o planeta e como isso tem impacto sobre várias populações” Particularmente populações negras, as que mais têm sofrido com desastres ecológicos, também eles na origem de vários movimentos migratórios forçados. “Na minha cabeça andavam os deslizamentos de terra de 2017 na Serra Leoa e os furacões em Porto Rico e Dominica, no mesmo ano”, diz Fofana. “Actualmente, países como a Serra Leoa, a Guiné, a Gâmbia ou o Senegal estão a ser devastados pelas alterações climáticas, desde erosões a secas severas.”

De certa forma, de várias formas, tudo isto vai atravessar a performance desta sexta-feira. Apesar de ir buscar o título ao disco Shafts of Sunlight, “não será uma simples transposição deste e de outros discos”, assinala o músico. E também não será uma simples adaptação geográfica. “Enquanto serra-leonês com raízes na Guiné, enquanto pessoa que lê Amílcar Cabral, actuar no Porto é pesado”, diz Lamin Fofana. “A situação apresenta algumas contradições profundas, e acredito que temos de as enfrentar e aprofundar. Vamos encontrar-nos para uma escuta colectiva, para sonhar durante o pôr do Sol, e eu prevejo que estaremos a sonhar em dissonância.”

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