O Coração Ainda Bate. Sem conserto

Inês Meneses escreve sobre aquilo que teimamos em adiar.

É assustador como adiamos tantas coisas na nossa vida. No meu caso, pode ser um qualquer pacote aberto que teima em ter um prazo de validade, e eu, mais teimosa ainda, fecho a porta do frigorífico e penso: um dia vai ser, mas não é hoje. Abro e fecho a porta do frigorífico com um sorriso sardónico que em breve irá virar-se contra mim.

Fazemos isto com tudo. Com decisões difíceis também. Vamos empurrando as questões que se penduram nos nossos ombros. Há dias em que elas se insinuam de forma mais evidente e estão ali a devorar-nos o sono. Não, eu não durmo bem porque sou ansiosa, mas durmo com a minha consciência tranquila. No fundo, a minha cama não chega para tanto. Daí as insónias, que espreitam pela brecha da janela, tomam conta de nós sem que possamos escolher o dia. Vamos sempre dizer: tinha de ser hoje! É sempre na pior noite: na que antecede um dia em cheio.

Não era nada de relevante o que adiava, tendo em conta que são muitas as coisas que me podem tirar o sono. Uma injustiça pode tirar-me o sono. Alguém que me magoou em surdina pode tirar-me o sono. Uma pessoa dúbia que não me olha nos olhos tira-me o sono. A desconfiança é amiga da insónia. Não tenho dúvidas. O pensamento galga os lençóis e dissemina-se de forma perigosa.

Era só um filme que eu nunca mais tinha conseguido ver. Um filme que me tinha levado ao cinema, ecrã gigante a transbordar um preto-e-branco triste que me colou o estômago às costas.

Quando fico muito triste, é assim que me sinto: de estômago colado às costas.

O filme chama-se “Cold War”. Polaco e frio, com a boémia de Paris pelo meio, com o jazz e as noites em que não se mede os copos, mas os sentimentos, por mais que estejam escondidos numa garrafa aberta. Tudo se pode revelar num gesto frágil que parecia inconsequente.

Quando vemos um filme sobre um amor assim, não o queremos ver nunca mais. Sabemos como acaba. Um amor perfeito tão intenso, que será voraz para sempre. As pessoas sabem quando estão no meio de um amor assim. Como sabem quando estão no meio de um filme assim e ficam aflitas porque querem um final feliz – como se fossem elas que estivessem ali. Um amor que atravessa anos, décadas. Um amor que conta os dias no calendário para que se volte a precipitar um encontro e depois ele não é nada do que sonhámos. É o avesso de tudo, e, ainda assim, continuamos a amar, a perseguir esse amor que nos corrói e devolve a alegria breve ao mesmo tempo.

“Cold War” é um filme para pessoas corajosas, que aceitam que o amor conhece muitas vidas diferentes e pode continuar quase intacto.

Há dias, um amigo falava-me do seu amor remendado, quebrado por tantas tentativas. E eu lembrei-me daquelas peças que nos diziam tanto, tanto, que insistíamos em colá-las. Que me importa os traços todos das fracturas? Uma peça mil vezes quebrada pode ter mais encanto do que algo ainda intacto. Só há um problema: o terror de sabermos que da próxima vez pode ser a última. Sem conserto. Sem cola. Sem remendo. Há amores assim. Vivemos o perigo diário de o ver partir-se para sempre. E nesta altura, já a dor se mistura com o amor e não sabemos bem o que estamos a viver.

Eu sabia como terminava “Cold War”. Arranjei coragem para o ver de novo num dia em que outra dor fazia frente na plateia das minhas tantas outras mágoas. São dias. Podemos ser felizes num dia e no outro apontar as mágoas. Eu não podia ver o filme num dia feliz.

Então encarei a tela a preto e branco e o amor que sobrevive a tudo até quando morre. Até quando morremos.

O amor, aquele que é mesmo amor, nunca vai depender de nada para sobreviver. Nem das pessoas que o viveram.

Fecho a porta do frigorífico e adio, uma vez mais, os prazos de validade que ali expiraram.


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