A demissão de Jacinda Ardern e o equilíbrio entre a vida pública e familiar

Dirigindo-se directamente à família, a neozelandesa disse que estava ansiosa por estar por perto quando a sua filha começar a escola, e finalmente casar com o seu companheiro.

A demissão inesperada da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, que mudou a face da política global quando, ao ser eleita, se tornou na mais jovem chefe de Estado mundo, lança uma luz sobre as exigências punitivas enfrentadas pelas mulheres no poder.

Retendo as lágrimas ao fazer a sua declaração de saída, a política de 42 anos disse que era altura de se afastar, após cinco anos e meio no cargo. “Os políticos são humanos”, declarou. “Damos tudo o que podemos, enquanto pudermos, e depois é tempo [de sair]. E para mim, chegou a hora.”

Mas, para Anne-Marie Brady, professora de política na Universidade de Cantuária da Nova Zelândia, as declarações que se seguiram foram mais reveladoras. Dirigindo-se directamente à família, Ardern disse que estava ansiosa por estar por perto quando a sua filha Neve começar a escola, e finalmente casar com o seu companheiro Clarke Gayford, apresentador de televisão.

Esta é uma era em que as jovens acreditam que podem ter tudo, mas permanecem ligadas à família, continua a especialista. As mulheres foram libertadas, mas as “instituições patriarcais” não evoluíram o suficiente para apoiar a vida familiar, acrescenta. “Precisamos de pessoas como Jacinda Ardern na política. Portanto, a sua decisão é motivo de reflexão sobre o que podemos fazer mais para apoiar as mulheres e os homens na política e a sua vida familiar também”, defende.

Durante o seu mandato, Jacinda Ardern não teve medo de quebrar as regras, tornando-se a primeira primeira-ministra, desde a paquistanesa Benazir Bhutto, a ter um bebé e tirar uma licença de maternidade.

Trata-se de uma governante que fez campanha para tornar a educação superior parcialmente livre, combater a pobreza infantil e descriminalizar o aborto, mas Jacinda Ardern também combateu o sexismo existente na política.

Em Novembro, numa conferência de imprensa depois de uma reunião com a primeira-ministra finlandesa, Sanna Marin, a neozelandesa rejeitou a pergunta de um dos jornalistas que sugeria que a idade e sexo das duas governantes eram a razão daquele encontro. “Teriam feito essa pergunta a Obama?”, respondeu.

“Globalmente, ela mudou a face da política só por ser ela”, resume Marian Baird, professora da Universidade de Sidney, especialista em género. “Penso que Jacinda Ardern tem sido um modelo para as jovens mulheres na política e talvez até para os jovens homens políticos que querem apresentar-se de uma forma diferente", defende. “Certamente que ela desafia o estereótipo masculino de ser primeira-ministra.”

Um trabalho “extraordinário”

”Vou sentir a sua falta, mas compreendo a sua decisão”, afirmou a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, à margem da reunião anual do Fórum Económico Mundial, nesta quinta-feira. Em Davos, a presidente da Moldávia, Maia Sandu, disse: “Tenho todo o respeito por Jacinda e admiro-a. Lamento que tenha tomado tal decisão, mas esta pode ser temporária. Não é fácil.”

Apesar do seu respeitado perfil a nível mundial, internamente a popularidade de Jacinda Ardern foi caindo, fruto do aumento do custo de vida, da criminalidade e da preocupação com as questões sociais.

Após a demissão, a ex-governante foi elogiada como uma líder que conquistou para o cargo graça e generosidade, particularmente em tempos difíceis como os que se têm vivido. A ex-primeira-ministra Helen Clark disse que Jacinda Ardern tinha feito um trabalho “extraordinário” ao estar à frente dos destinos da Nova Zelândia nos últimos tempos.

Ardern cumpriu uma agenda social e económica chave, e posicionou a Nova Zelândia como uma nação que “representa a cooperação e valores decentes”. Na mesma declaração, Helen Clark acrescentou: “As pressões sobre os primeiros-ministros são sempre grandes, mas nesta era das redes sociais e da pressão dos clickbait, e ciclos permanentes de notícias, Jacinda enfrentou um nível de ódio e veneno que, na minha experiência, é sem precedentes no nosso país.”

“A nossa sociedade poderia agora reflectir de forma útil sobre se quer continuar a tolerar a polarização excessiva que está a tornar a política num apelo cada vez menos atraente”, conclui.

Mu Sochua, política cambojana da oposição, lamenta que o mundo tenha perdido uma líder que conquistou confiança e respeito, e “sempre liderou com o coração”. Já a jornalista e activista indonésia pelos direitos das mulheres, Yenny Wahid, aponta que a decisão de Ardern trouxe uma “importante” mensagem para a próxima geração de líderes: “Ela escolheu o momento da sua saída, ela tem prioridades diferentes neste momento da sua vida e mostra à nova geração que não faz mal [sair quando se quer].”


Texto de Kate Lamb, em Jacarta; Lucy Craymer, em Wellington; e Kanupriya Kapoor, em Singapura

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