O Coração Ainda Bate. Um amor do passado

Inês Meneses fala da tentação de voltar ao passado.

Demoramos muito tempo a explicar às pessoas de quem gostámos, ou àquelas com quem não fomos correctos, o rumo inesperado que a nossa vida seguiu. Às vezes, não foi nada inesperado. Foi tudo sentido e precipitado. Queríamos viver outras coisas, queríamos ser levados por outras pessoas. É muito comum gostarmos particularmente de um momento em que ficamos não com um fascínio, mas com vários para gerir. Isso dá-nos uma ideia de invencibilidade, como se a dor nunca nos fosse tocar. (Não demorará muito, porque a ilusão tem sempre os dias contados.) Somos injustos tantas vezes quantas um dia poderão ser connosco. E quem não aprendeu isto, então, está longe de perceber as regras do encontro.

Ainda hoje, quando me lembro, divirto-me a procurar na concha virtual o nome do primeiro rapaz que me fez sentir especial. Procuro, mas nunca o encontro. Parece impossível. Tínhamos 9 anos. A vida de ambos cristalizou aquele momento. Foi apenas um momento sem a possibilidade de haver outro rumo. A tendência é querer voltar ali como se nos fosse devolvida a juventude que se gastou. Só a arte do imprevisível nos faria encontrar e perceber quem éramos. Não há relevância no caso. Só mesmo no acaso. Todos nós gostamos do encontro que se repete quando ele foi quase feliz. Ficou ali qualquer coisa por se viver, e então, até quando foi algo muito longe da ideia de amor, convencemo-nos de que aquilo foi muito melhor, foi quase perfeito, não estivesse o “quase” a milhas da harmonia, de uma ideia que nos segura a outra pessoa e forma um par. Nós gostamos mesmo do que nos deu o passado, até porque o presente ainda não nos dá garantias de nada.

Mas o passado traz imensos equívocos. É preciso arranjar umas dioptrias com lucidez para se ver tudo melhor. Quando um dia me perguntei – num confronto cruel com o passado – se era amor ou teimosia o que tinha vivido, não tive dúvidas na resposta. Pensei até na formulação simples da pergunta e questionei-me por que razão não teria concluído mais cedo que uma história que teimava em ser infeliz podia alguma vez ser amor. As pessoas fazem do amor (ou algo a que chamam amor) um elástico pelo qual vão puxando tanto, que antes de rebentar fica frouxo, e na frouxidão já nada se vive que se assemelhe a uma coisa boa.

Um namorado ou uma namorada que nunca nos disse que estávamos bonitos, que éramos especiais na sua vida, que nunca nos abraçou na estação de comboios não vale nenhuma viagem. Eu diria que há até pessoas que, sentindo-se inferiores, têm um especial prazer em dar a ideia de que quase parecem apaixonadas por nós, e assim se mantêm. E assim nos mantêm: ficamos cativos de coisa pouca. Muitos acham que uma relação coxa é melhor do que nada. Outros há que, anos depois, encontram a resposta para a pergunta, se foi amor ou teimosia. Nunca foi amor se uma das partes diminuía a outra. Se havia sempre saldo negativo quando se tentava adormecer ou já se acordava de angústia ao peito.

As pessoas aguentam muitas coisas: em nome da companhia, do tal amor, do passado que repescaram, da tentação de reviverem o amor que agora podia ser melhor, mas não foi.

Vimos mais perdidos de uma tentativa que não deu certo. As pessoas até mudaram, mas não perceberam que o amor vive da química e que duas pessoas aparentemente compatíveis podem nunca combinar. A tentativa deixa-nos caídos muito tempo. Acabamos, muitas vezes, por nunca explicar ao outro por que motivo não voltou a dar certo: porque não era para dar. Porque há mais vida para se viver. Porque voltar a um lugar que parecia seguro foi só uma insegurança nossa de viver o novo. Fomos, somos e seremos muitas vezes injustos com as pessoas que se aproximam de nós. Faz parte deste jogo que teimamos em jogar e que se chama amor. Ou apenas teimosia.


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