O défice de responsabilidade

Faz falta uma ética de serviço público; uma ética do compromisso e do dever; dever de implicação no desenvolvimento de projetos mais educativos; de autoavaliação; de cooperação e de verdade.

É um défice oculto, raramente nomeado, politicamente incorreto, mas que tem mil caras e manifestações. É um défice difuso, matricial, invasivo. É um défice minoritário, mas que mina a vontade geral. À rédea solta, por aí prolifera. Sem que as consciências profissionais se indignem; sem que os órgãos das escolas afirmem a sua legítima autoridade; sem que a administração educativa se manifeste e ponha cobro a situações de indiferença, de atropelo, de indignidade.

A origem etimológica da palavra responsabilidade é a do verbo latino “respondere” que significa responder. Responder à consciência profissional do serviço público prestado. Responder aos direitos de aprendizagem de milhares de alunos. Responder aos direitos das famílias que precisam de ter um mínimo de informação que lhes permita organizar as suas vidas. Responder para que a atividade profissional não seja um cálculo autocentrado.

É possível ver mil caras e manifestações deste défice: quando o horário começa às 8h30 e o pedido tinha sido para começar às 9h30; quando o dia livre não coincide com a expectativa e logo se ameaça com a falta sistemática às aulas; quando as medidas promotoras de mais sucesso escolar chocam com os interesses particulares; quando é sempre o outro que é responsável, o sistema, o ministério, os programas, os alunos, as famílias, o meio socioeconómico; quando as pequenas falsidades invadem o viver quotidiano; quando predomina a lógica da aparência e do faz-de-conta em todos os níveis do sistema educativo. Quando a autoridade desaparece. Quando os interesses particulares (mesmo legítimos) confrontam os interesses públicos e gerais. Quando o respeito anda pelas ruas da amargura.

Faz falta a afirmação de uma ética de serviço público; uma ética do compromisso e do dever; o dever de implicação na construção e no desenvolvimento de projetos mais educativos; o dever de autoavaliação; o dever da investigação e da reflexão; o dever da cooperação e da verdade. E o dever de exigir políticas e práticas que reforcem a procura social da profissão docente, uma indução profissional digna desse nome, uma avaliação de desempenho que não esteja refém da prisão das quotas, um trabalho mais interativo e colaborativo, uma inscrição territorial liberta do medo de interagir e de agir e que afirme a centralidade do local na construção de uma outra lógica educativa: mais próxima, mais livre, mais integrada e mais comprometida. E liberta dos fantasmas que não nos fazem sair da cepa torta.

Faz falta a lucidez de reconhecer um mal-estar geral, um labirinto onde todos estamos a perder; de preservar um diálogo que nos resgate da insustentável maquinação da terra queimada (ainda que se possa compreender o que nos levou ao estado de sítio); de colocar os direitos das crianças e dos adolescentes em primeiro lugar; de pugnar, mesmo contra os arautos do jogo de soma nula, por uma aliança entre professores, alunos e pais.

Porque neste jogo que vai minando as nossas escolas (quase) todos perdemos, (quase) todos nos sacrificamos, (quase) todos nos desiludimos. Porque só uma ação mais responsável legitima a exigência de (mais) direitos. De mais respeito. De mais dignidade. De mais educação. De mais serviço público.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários