O Janeiro quente de Brasília

O Capitólio abriu espaço para a réplica. O que se pode e deve temer agora é a replicação pelo Ocidente, nas próximas eleições em vários países, onde populismos autoritários se afirmam a voz do povo.

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Apoiantes de Bolsonaro inavdiram o Palácio do Planalto, em Brasília Reuters/UESLEI MARCELINO

Bolsonaro procurou, desde o começo do seu trajeto presidencial, ainda na campanha que o levou à presidência do Brasil em 2018, copiar a metodologia de de Donald Trump, concentrando-se na canalização de preconceitos e no desagrado pela mitigação dos privilégios históricos das classes alta e média brasileiras, que herdaram uma forma de organização social de matriz colonial e tudo fizeram para a preservar, através da ideologia do Estado.

Com Bolsonaro, entrou em definitivo no campo político a “guerra cultural”, perfeitamente demarcada entre as regiões maioritariamente brancas e que odeiam o nordeste negro, o setor evangélico da sociedade, transversal em termos de classe, mas dominado pelas elites, defensor de uma virada conservadora em matéria de costumes para o país e da confluência entre Estado e Igreja, e as classes sociais mais baixas não-evangélicas, a esquerda progressista e os setores militantes e ativistas LGBT+ e antirracistas.

Deu-se a batalha pelo coração do Brasil, com a direita radicalizada e arregimentada em torno de Bolsonaro, e que fez uso da corrupção que envolveu os governos do PT para implementar as pautas de costumes e a pauta neoliberal na economia, com uma vocação de privatização e exploração dos recursos naturais, como o desmatamento da Amazónia. O eixo Boi-Bala-Bíblia criou as condições para que o bolsonarismo se tornasse vigorante.

A base desta força reside na classe média, que sempre frequentou as melhores universidades (e que em alguns casos se viu ultrapassada por jovens mais aptos oriundos das classes baixas em razão das políticas sociais dos governos PT), que trabalha nos principais jornais das grandes cidades como São Paulo, que viu a sua capacidade de exploração da mão-de-obra pobre diminuída pela legislação laboral do PT que impôs garantias aos trabalhadores.

De forma categórica pergunta Jessé Souza, em A Elite do Atraso, “[c]omo alguém que explora as outras classes abaixo dela sob a forma de um salário vil, de modo a poupar tempo nas tarefas domésticas, e apoia a matança indiscriminada de pobres pela polícia, ou até a chacina de presos indefesos, consegue ter a pachorra de se acreditar moralmente elevado?” O facto é que pode e canalizou esse sentimento de superioridade para o bolsonarismo.

Ora, o cruzamento entre sentimento de injustiça por perda de privilégios de classe, o natural desagrado com a corrupção estrutural (verdadeiramente estrutural, na medida em se encontra na própria formação do Brasil como Estado), a importação das mais alienadas teorias conspiratórias e populistas trumpistas e a profunda crença messiânica num chefe providencial e num povo eleito (eles mesmos), produz uma massa de eleitores com uma missão, que por considerarem providencial não deve qualquer respeito à Constituição e às regras democráticas. Tendo ensaiado uma postura trumpista ambígua de derrota sem derrota, Bolsonaro alimentou as hostes, deixando marinar a crença de fraude eleitoral, a que o seu partido deu continuidade e ampliação.

Podemos afirmar, sem receios, que estamos diante de um movimento de natureza fascista do tipo caudilho, que recusa resultados eleitorais, que não aceita a democracia, que quer uma identidade única para o país (ideologia da nação), centralizada num aparelho de Estado forte, de “lei e ordem”, fortemente classista e racial, e profundamente conservador-religioso (evangélico). A provável repressão militar para repor o normal funcionamento das instituições não é garantia de sobrevivência do regime. Lula é o anti-Cristo e precisa ser derrotado, de qualquer maneira. O avanço das forças de segurança poderá ser lido como um sinal de avanço dos romanos sobre os cristãos, e os bolsonaristas poderão assumir-se como mártires da sua causa patriótica.

O discurso de Lula de reação à invasão do Congresso, do Planalto e do Supremo Tribunal Federal pouco sanará a situação, ao reforçar o combate entre a esquerda e a direita, ao acusar Bolsonaro de ser “genocida”, ao forçar a divisão social e ao colocar um peso negativo sobre os apoiantes bolsonaristas, ao chamá-los de “fascistas fanáticos”. A frieza de Estado que se poderia exigir deu lugar à continuidade da rutura social e da luta ideológica.

A teoria dos “dois Brasis” está agora posta à prova, como nunca. Daqui para a frente a “guerra cultural” terá uma dimensão de confrontação civil. Resta saber em que termos e escala. Das famílias divididas ao país partido a marcha segue. A tese de uma divisão real do país, de uma desagregação da União Federal está em cima da mesa. Num cenário mais mitigado, as forças de segurança serão capazes de evitar a escalada e deixar a democracia segura, todavia num estado de alerta permanente cujos efeitos políticos no Senado são ainda difíceis de prever.

O precedente do Capitólio abriu espaço para esta réplica. O que se pode e deve temer é a replicação pelo Ocidente, nas próximas eleições em vários países europeus, onde os populismos, vários de inspiração autoritária, se afirmam a voz do povo. Não podemos deixar de lembrar as palavras de Georges Duhamel: “Os maiores tiranos do povo saíram quase todos do povo”.

Para já, o Brasil é a bomba-relógio, o laboratório mais evidente das guerras culturais e da alienação ideológica. Desta feita será o setor trumpista dos Estados Unidos a olhar para o Brasil como laboratório de potencialidades. A forma como a situação se desenrolar no Brasil terá efeitos nos caminhos vindouros das democracias Ocidentais mais polarizadas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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