O Coração Ainda Bate. Luz forte

Inês Meneses escreve sobre o amor que nunca acaba.

Vamos agora desfazer a árvore de Natal. Quando a arrumarmos, uma nostalgia virá de mansinho pousar-nos nos ombros. Fica ali durante dias a empurrar-nos para os três ou quatro momentos que todos os anos fazem valer a pena voltarmos a iluminá-la. A árvore dobrada e metida num caixote lembra-nos que o tempo avança. As peças que todos os anos lhe assentam serão guardadas noutra caixa. Há uma ordem que não se altera, mesmo que o mundo nos mude.

Há muitos anos que esta mesma árvore é feita a quatro mãos. Eram ainda muito pequeninas as mãos da minha filha, pegando a medo em tudo o que podia tornar aquele canto ainda mais bonito. As mãozinhas dela eram amparadas pelas do pai. Luz forte a que protege uma relação assim.

Há dezoito anos que eu e o pai da minha filha passamos o Natal juntos, apesar de nos termos separado há nove. Dezoito. O pai dela será sempre a minha família, por muito que as nossas famílias se reconstruam, renasçam, alarguem. Neste ano, o pai da minha filha trouxe a namorada: um ser luminoso e alegre que eu, a nossa filha e o meu marido queríamos muito ter cá em casa. Sabem o que é o Natal? Algo próximo disto. Seria também ajudar quem está lá fora sem tecto, mas muitas vezes os que estão debaixo do mesmo tecto não querem estar ali. Nós queríamos muito viver aquele momento.

A nostalgia do Natal que passou não me impele a falar sobre a época que já lá vai, mas sobre o verdadeiro amor. E sobre o amor que nunca mais acaba, porque se um dia foi amor verdadeiro, por que razão haveria de acabar?

Há muitas coisas que temos ou devemos ultrapassar quando uma relação acaba. A dor, primeiro que tudo, que vai andar quase como um uniforme que dispensávamos: nós não queremos vestir aquilo, mas aquilo é o fato de serviço. A dor estará de serviço muito tempo. Não é facilmente que largamos o uniforme.

Depois da dor, os ajustes. Aprender a estar “sem ir buscar pecados velhos” – uma frase que a minha mãe repetia e que me fez agora sentido. Quando as relações acabam, ficamos a ruminar no que não se disse, no que quase dissemos, no que nunca se devia ter dito. Talvez seja um erro. É quase sempre, porque, mais uma vez, estará a dor no tinteiro. E ela tolda-nos, escreve torto por linhas pouco definidas.

As relações ainda são vistas com esse princípio, meio e fim. Eu acho que retirando, evidentemente, o sexo da equação, podem ser um prolongamento, aquilo a que podemos chamar de amizade. Se aquela pessoa esteve dez anos na nossa vida, como passa a ser um estranho? Como passamos a ser estranhos se um dia fomos cúmplices, ousámos sonhar em conjunto? É isso que o amor nos faz: planeamos um futuro que não sabemos se vai acontecer, mas que queremos muito que aconteça. Um dia, os planos acabam porque o amor não continuou, e, ainda que a medo, voltaremos a esses planos conjuntos. Ir ao cinema é um plano conjunto, ir jantar, fazer uma viagem, deixar uma camisola “lá em casa”, e depois mais outra. Planos, sim. O amor é planeado mesmo quando não percebemos que algo já segue à nossa frente. Se calhar o amor é essa vida própria onde às vezes já nem precisamos de fazer muito. É bom quando acontece.

A árvore vai ser arrumada. E durante o primeiro mês faltará a este canto uma luz e a alegria das mãos que giraram à volta dela para que acontecesse qualquer coisa novamente: para que nos lembrássemos de que somos e seremos uma família. Que queremos estar uns com os outros, muitas vezes durante o ano e naquela noite especial também.

O amor não acaba. A não ser que optemos por dar força ao ressentimento em vez de trabalharmos para que a árvore se volte a iluminar.

Há uma luz que nunca se apaga.


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