Um Tribunal especial para julgar Putin: entre a justiça e a política

A administração Biden não estará na linha da frente da criação de um tribunal especial, mas não deverá opor-se se este avançar.

A face mais visível do conflito armado na Ucrânia são as imagens diárias dos bombardeamentos de cidades ucranianas. Contudo, esta guerra estende-se a outras dimensões (político-diplomática, económica, energética) para além da militar, e envolve outros atores na arena das relações internacionais.

Menos (re)conhecido é o recurso aos tribunais internacionais que a Ucrânia tem feito para, no plano do direito internacional, responsabilizar a Rússia. O Tribunal Internacional de Justiça, o Tribunal Penal Internacional (TPI) e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos estão a “investigar” e “julgar” as condutas da Rússia nas respetivas esferas de competência.

Contudo, o crime de agressão cometido pela Rússia escapa à jurisdição da atual rede dos tribunais internacionais. Para suprir essa lacuna, em março de 2022 várias personalidades, lideradas por Gordon Brown, lançaram a ideia de criar um tribunal especial. Esta ideia foi ganhando tração em meios académicos e tem sido esgrimida como “arma de arremesso” política pelas autoridades ucranianas.

Juntando-se a esta iniciativa, a Comissão Europeia apresentou aos Estados Membros duas opções para julgar os principais responsáveis russos (ainda que não o nomeie com o Presidente Putin à cabeça) pelo crime de agressão cometido contra a Ucrânia: (i) um “tribunal internacional independente especial” a ser estabelecido por tratado multilateral, ou (ii) um tribunal híbrido. Com razão o Procurador-Geral do TPI, Karim Khan, criticou a proposta de criar mais um tribunal internacional, quando o TPI já está no terreno a investigar a comissão de outros crimes internacionais perpetrados na Ucrânia.

Como peça essencial da sua estratégia comunicacional, o Presidente ucraniano tem pugnado pela primeira opção: um tribunal para julgar Putin e outros responsáveis pela agressão. Aliás foi referida como condição em futuras negociações diplomáticas com a Rússia (exigência que é reveladora da ausência de vontade em negociar).

Os Estados Unidos oficialmente ainda não se pronunciaram sobre esta iniciativa europeia. Considerando o que pensam do TPI (do qual não são membros), sendo bem conhecida a defesa intransigente que fazem do princípio do consentimento de um Estado para os seus nacionais poderem ser julgados num tribunal internacional, bem como a aversão a criar precedentes que possam reverter contra si (o fantasma do Iraque 2003...), o silêncio não é de estranhar. A administração Biden não estará na linha da frente da criação de um tribunal especial, mas não deverá opor-se se este avançar.

A criação de um tribunal internacional especial com jurisdição sobre o crime de agressão contra a Ucrânia, desejável no plano dos princípios, enfrenta complexos desafios quanto à sua legalidade internacional (base da jurisdição e imunidades), a que acrescem significativos riscos políticos que podem pôr em causa a sua legitimidade. Para evitar a acusação de justiça seletiva (ad hominem), ou de duplo standard e hipocrisia dos seus proponentes, um tal tribunal teria de ter o apoio generalizado da comunidade internacional.

Sabendo-se que não será criado pelo Conselho de Segurança (lembremos o direito de veto da Rússia e da China), a legitimidade internacional só poderia ser endossada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Parece distante a ideia de uma comunidade internacional mobilizada num apoio massivo e transversal em Assembleia Geral a um tratado multilateral (entre quem?) para a criação de um tribunal internacional especial.

A segunda opção da Comissão, a criação de um tribunal (europeu) híbrido com jurisdição sobre a agressão, de cunho regional, ainda que realista, seria ainda mais difícil de justificar quanto à sua legitimidade.

O precedente de Nuremberga invocado como modelo desta proposta de um tribunal especial é sem dúvida apelativo. Esquece-se, todavia, que o Tribunal de Nuremberga foi criado após a capitulação da Alemanha pelas potências vencedoras da guerra. Não há paralelismo com a situação atual, em que mais do que fazer justiça se está a usar um futuro tribunal como instrumento de política internacional.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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