Em memória dos que arderam nas fogueiras das redes sociais em 2022

A viralização de notícias falsas contribui para a marginalização, obstaculizando percursos e afectando gravemente a saúde mental.

Foto
"Estas fogueiras da época medieval continuam acesas, assumindo novos contornos" Tyler Delgado/Unsplash

Violência nas redes sociais? É literalmente ao pontapé! Vale tudo neste ringue, neste faroeste, nesta época medieval sem rei nem roque, onde se criam perfis falsos num piscar de olhos para que se possa dizer ao outro o que jamais, em tempo algum, se teria coragem de dizer cara a cara.

Richard Puller von Hohenburg e o seu criado Anthony Mätzler foram queimados vivos em Zurique, no ano de 1482, por alegadamente serem homossexuais. Alegadamente porque foi após tortura que Puller permitiu uma primeira confissão e posteriormente a 24 de Setembro de 1482, na presença de uma grande multidão, instado a confessar a sua orientação sexual, recusou fazê-lo. Dir-me-ão que os tempos estão muito mudados. Enganam-se.

Estas fogueiras da época medieval continuam acesas, assumindo novos contornos. São vários os estudos que indicam que a violência online tem aumentado de forma exponencial, nomeadamente no contexto de pandemia.

Os santos dos tempos modernos que sofreram silenciosamente como Javier Messina, ‘el Dios Punk’, são cada vez mais comuns. A história que teve lugar na Argentina, saiu vencedora no prémio de jornalismo ibero-americano Gabo e retratada no cada vez mais novo género jornalístico podcast, mostra como um jovem músico de rua foi denegrido e violentado nas redes sociais por uma acusação de assédio e sequestro, de que era inocente, terminando no desfecho trágico de suicídio por causa da violência física e simbólica que recebeu.

Esta viralização de notícias falsas contribui para a marginalização, obstaculizando percursos e afectando gravemente a saúde mental. “A repercussão mediática deste trabalho revitalizou a discussão em torno dos perigos das práticas de escravidão virtual e justiça vigilante que se reproduzem através das redes sociais”, pode ler-se na fundamentação para atribuição do prémio, no portal da iniciativa.

Também a nível local, vemos muito fogo ser ateado nas redes sociais, havendo sempre dificuldade em colocar-se no lugar do outro. Não raras vezes, páginas como a da Associação Não Partilhes, vão denunciando modalidades de violência online, como o cyberflashing que corresponde à recepção de imagens de natureza sexual não desejadas. É preciso estar cada vez mais atento a este tipo de violência, que surge em surdina, e vai em crescendo, com a ajuda do palco das redes sociais e onde não há meio-termo — ou somos bons, ou somos maus. Ou odiamos ou amamos. Onde o simples comentário: “Eu gosto de morangos”, vai espoletar ira e amores. “Gostas de morangos, porquê, sua cabra?” Logo seguido de outro: “Olha lá, mas estás-te a passar, o que tens contra os morangos?” E assim se geram guerras tontas, e de regresso à Idade Média.

Neste ano que passou, caíram nestas fogueiras algumas figuras públicas nacionais e internacionais. A icónica Madonna chegou mesmo apelar: “Parem de me fazer bullying.” A violência online é crescente e sobretudo direccionada às mulheres. E embora o meio digital não reflicta a 100% a realidade é preciso parar, já.

Precisamos de novas leis ou de uma regulamentação interna mais profunda por parte de quem detém estas redes, para que mais ninguém arda nestas fogueiras virtuais do século XXI.

Sugerir correcção
Ler 11 comentários