Nos limites da representatividade política

A representatividade étnico-racial na política pode ter armadilhas. Mas, independentemente de onde nos coloquemos, é preciso que a conheçamos melhor, porque cá, sobre ela, se sabe muito pouco

Recentemente, o líder do Partido Chega afirmou que “o único deputado negro nesta casa [Parlamento] é do Chega". Nessa afirmação, o problema maior não é a "imprecisão’" na contagem, mas o que ela nos mostra da manipulação da representatividade étnico-racial na política.

O Partido Chega tem procurado legitimar e contrabalançar as suas posições racistas usando porta-vozes racializados, como Luc Mombito, secretário pessoal e "como um irmão" do líder do partido, ou como quando o último apresenta duas pessoas ciganas como apoiantes do Chega, para dizer que “é um exemplo de como o Chega não tem nenhuma conexão, nem nenhum intuito racista” (Bragança, 2021). A eleição de Mithá Ribeiro, que defende que não existe racismo em Portugal e que O Colonialismo Nunca Existiu! (livro que publicou em 2013), é outro desdobramento daquela estratégia.

Mas mais interessante, talvez, seja observar como, ao longo do tempo, sobretudo, em momentos de ascenso da contestação negra, o sistema político português incorporou – temporariamente e no mínimo indispensável – deputados/as negros/as nos seus órgãos de representação. Durante a I República (1911-1926), teremos, por exemplo, em Lisboa, os deputados João de Castro e José de Magalhães, importantes dirigentes de um movimento político que, entre territórios colonizados e Lisboa, fazia uma crítica sistemática ao colonialismo. Apesar da abertura política da I República, com ela os "canhões" voltavam-se em força contra África, com as campanhas de ocupação, e erigia-se a estrutura neo-escravocrata das plantações de cacau de S. Tomé e Príncipe. O poder colonial procurava legitimar-se e agilizar processos de dominação e exploração através da cooptação nos sectores mais privilegiados e politizados da população negra. Em França, passava-se algo de semelhante e deputados negros como Blaise Diagne e Gratien Candace eram colocados na "intermediação" entre a "metrópole" e os territórios colonizados.

Mais tarde, perante o crescimento do confronto entre movimentos anticoloniais e o Estado Novo, que culminaria nas lutas de libertação nacional africanas ou, como se diz por cá, na "guerra colonial", a ditadura fascista (1933-1974) também abriria, oportunisticamente, espaço para que deputados negros integrassem a Assembleia Nacional. É o caso, por exemplo, de José Tenreiro (1957-1963), António Burity da Silva (1961-1965) e da primeira deputada negra, Sinclética Torres (1965-1974). Independentemente dos seus méritos pessoais e políticos, a sua eleição serviu uma estratégia de "tokenismo" de um colonialismo que para se manter necessitava de se "re-legitimar" no interior do império e no xadrez internacional do pós-II GGM.

Passaria o 25 de Abril, o PREC, a dita transição para a "normalização democrática" e a entrada na União Europeia até que voltássemos a ter representação negra na política portuguesa. A forte mobilização do movimento associativo imigrante, maioritariamente africano, dos anos 1990, haveria de "forçar" a esquerda a abrir espaço e Manuel Correia (PCP, 1991-1995) e Fernando Ká (PS, 1991-1995) chegariam à Assembleia da República. No mesmo período, Helena Lopes da Silva era a primeira mulher negra a encabeçar uma lista em eleições em Portugal, na corrida às Europeias (PSR, 1994).

Após os anos 1990, retornou-se a uma total ausência de representatividade negra nos partidos de esquerda, mas à direita teríamos deputados como Hélder Amaral (CDS, 2002-2019) e Nilza de Sena (PSD, 2011-2019). Mais tardia do que na esquerda, sem cooptação nos movimentos sociais, com uma duração mais longa, a presença destes deputados pouco ou nada teve de propositivo no combate ao racismo.

A representatividade negra à esquerda voltaria em 2019, mais uma vez, num momento alto da mobilização política negra e antirracismo em Portugal. No espaço internacional, tínhamos o Black Lives Matter/Vidas Negras Importam, o fim da era Obama (2009-2017) e a emergência, nos EUA, de uma "frente" [“The Squad’] de quatro mulheres racializadas eleitas para a Câmara dos Representantes que se notabilizou pela confrontação com Donald Trump: Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar, Ayanna Pressley e Rashida Tlaib. Em Portugal, seriam eleitas três deputadas – Beatriz Gomes Dias (BE), Joacine Katar Moreira, enquanto cabeça de lista (Livre), e Romualda Fernandes (PS) – e, nas eleições europeias, teríamos a candidatura de Anabela Rodrigues (BE, 2019). No entanto, esse é também o ano em que Mamadou Ba, após ter deixado de ser assessor na Assembleia da República, se desfilia definitivamente do seu partido (BE).

Embora com outras funções, e sem o mesmo trajeto pelos movimentos sociais, teríamos ainda Francisca Van Dunem, a primeira e única mulher negra a ocupar um lugar ministerial (ministra da Justiça, 2015-2022), tal como Christiane Taubira em França (ministra da Justiça, 2012-2016) ou Cécile Kyenge em Itália (ministra da Integração, 2013-2014).

As legislativas de 2022 parecem anunciar padrões que já havíamos visto. À esquerda, três das quatro representantes sairão, ficando somente Romualda Fernandes. À direita, Ossanda Líber procura fundar o partido Nova Direita (2022), após abandonar o Partido Aliança, e temos a entrada de Mithá Ribeiro, enquanto deputado na Assembleia da República (Partido Chega, 2022). No plano internacional, isso não é inédito, veja-se, por exemplo, o atual primeiro-ministro e a composição dos representantes do Partido Conservador no Reino Unido ou, à extrema-direita, o caso do Partido Lega, de Matteo Salvini, que elegerá Tony Iwobi, em 2018.

Hoje, assistimos a um recuo na representatividade étnico-racial, à esquerda. A isso não é alheio o facto de o compromisso com a questão parecer sempre mais performado do que assumido. Por um lado, quer-se chegar a "novos eleitores" e acompanhar debates e orientações internacionais, por outro recusa-se reconhecer a autonomia relativa e a relevância estrutural das questões raciais face às de classe, assim como o "lugar de fala" das pessoas negras. Conservar o "velho eleitorado" parece exigir uma postura "colour blind", meritocrática e que não belisque a narrativa sobre o passado colonial.

A representatividade étnico-racial na política pode, como vimos, ter armadilhas. Há quem diga que ela é em si racista e que a origem étnico-racial dos representantes políticos não interessa. Há quem, com mais ou menos pragmatismo, deposite muita confiança na sua capacidade transformadora. Há quem considere que está condenada a falhar porque o Estado-nação é em si colonial e burguês. Há ainda quem procure uma representatividade quantitativa que seja também qualitativa. Mas, independentemente de onde nos coloquemos, é preciso que a conheçamos melhor, porque cá, sobre ela, se sabe muito pouco.

Nota: Pela sua especificidade, não discutimos aqui a representação negra na política local, nem a presença de outros sujeitos racializados (como António Costa, Nelson de Souza, Carlos Miguel e Narana Coissoró) no espaço da representação política.

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