E os outros 349 dias de direitos das mulheres?

Será que o activismo eficaz e a diplomacia devem continuar a passar pelas redes sociais sem ser acompanhados por esforços tangíveis a nível da discussão política?

Terminou no Dia Internacional dos Direitos Humanos a campanha anual dos “16 dias de activismo contra a violência de género”, um esforço de diplomacia pública à escala mundial, sob a égide das Nações Unidas, que visa alertar para a realidade do estatuto das mulheres. Este ano manteve-se a tradição, numa mistura de slogans vazios, hashtags repetidos e promessas de países suspeitos, tendo-se procurado dar visibilidade à pandemia da violência contra as mulheres, esse problema estrutural e de respostas difíceis em praticamente todas as sociedades do mundo. Mas será que o activismo eficaz e a diplomacia devem continuar a passar pelas redes sociais sem ser acompanhados por esforços tangíveis a nível da discussão política?

Julgo que, embora se deva celebrar este esforço louvável, e que numa era digital faça sentido apostar no activismo online, deve-se também denunciar que o verdadeiro poder transformador desta campanha ficará sempre aquém da acção política adjacente aos direitos das mulheres. Na verdade, e não só relativamente à violência, temos sido bruscamente relembrados de que a igualdade de género é um objectivo de desenvolvimento sustentável urgente, com relevância para uma sociedade resiliente e justa, e que padece de um desinteresse político crónico. Para surpresa de poucos, avizinha-se um futuro em que a igualdade será uma meta incompleta ou em efectiva regressão, e onde sobrará cada vez menos tempo para avançar os direitos das mulheres desde a saúde à educação, ou da política externa à paz e segurança internacional.

Por exemplo, a ausência de mulheres a nível político e diplomático, nomeadamente nas negociações entre a Ucrânia e a Rússia, relembra-nos que, em certos domínios tradicionalmente masculinos, a participação das mulheres é ainda uma excepção e não a regra. Apesar de inúmeros relatos e dos diferentes papéis que as mulheres ucranianas têm assumido na guerra, a sua exclusão é justificada pela ideia arcaica de que as mulheres são apenas vítimas e não líderes dotadas de agência política, ou ainda que os homens, reflectindo a sua realidade social, detêm o poder nas questões da defesa e da segurança.

Também a acentuação de falhas em regimes democráticos tem trazido novos desafios à saúde sexual e reprodutiva das mulheres, um direito humano sob constante ameaça, ainda que reconhecido pelas mais altas instâncias da política internacional. O caso polaco parece indicar que, mesmo em território da União Europeia – essa tal guardiã dos direitos fundamentais –, o corpo das mulheres é, em pleno século XXI, objecto de arremesso político. Ainda a novidade do nexo segurança-género-clima, ou como as alterações climáticas e a insegurança têm um impacto desproporcional nas mulheres, tem sido um tema menosprezado na adopção de políticas públicas.

Finalmente, a deterioração dos direitos das mulheres além das nossas fronteiras, incluindo no Afeganistão e no Irão, merece a total atenção e acção do Ocidente, como se de ameaças directas aos seus próprios direitos humanos se tratassem. Isto porque, no dia em que deixarmos cair as mulheres afegãs e iranianas, ou metade da sociedade de qualquer outro país, também a ONU perderá a sua razão de ser.

Alguma esperança se esboça, no entanto, face ao autoritarismo, ao belicismo e à misoginia crescente nas últimas décadas: os crescentes compromissos políticos de vários Estados-membros que promovem a adopção de políticas externas feministas, e dos membros do Conselho de Segurança da ONU que lideram a implementação da agenda Mulheres, Paz e Segurança. Caso se evolua nesse sentido, uma perspectiva feminista pode ser significativa na coerência e alinhamento entre política nacional e política externa dos países, permitindo assim fazer avançar em uníssono os direitos das mulheres. Também Portugal, enquanto actor verdadeiramente comprometido com estes valores, se deve movimentar politicamente nesse sentido.

Por todas estas razões, urge ainda relembrar que aquilo que a diplomacia pública da ONU não substitui são políticas públicas e leis eficazes, nomeadamente através de recursos financeiros para a prevenção contra a violência de género; novas formas e fóruns de decisão política, para que também as mulheres tenham lugar à mesa desde o primeiro momento; e a monitorização da implementação dos direitos humanos, de preferência através de mecanismos transparentes e eficazes.

Até lá, a protecção dos direitos das mulheres nos restantes 349 dias do ano continuará a ser, para benefício de muitos e grande inquietação de outros, um projecto de slogans e hashtags incompleto. Afinal, de que serve às mulheres, vítimas de violência de género e não só, ser cidadãs de países que publicam nas redes sociais sem ter primeiramente ratificado os instrumentos internacionais de protecção dos seus direitos?

Sugerir correcção
Comentar