O Coração Ainda Bate. A moldura

Inês Meneses escreve sobre o luto e uma dor crónica: “Preciso de fazer as pazes com o divino e lembrar-me de que o amor é mesmo a maior distracção da morte”.

Acho que foi num dia que parecia normal. Dias normais são dias sem dores, sem angústias prévias, sem nada que se desenhe no horizonte como perturbador, difícil de ultrapassar. Foi num dia em que saí de casa para almoçar e a meio do caminho me apercebi de que não tinha o telemóvel comigo. Coisas que até nos fazem voltar para trás, não é? Segui em frente. Estava tudo bem. Ficar sem o telemóvel dá-nos a oportunidade de registar com maior verdade aquilo que está a acontecer. Cristalizamos o momento dentro da nossa cabeça, e mais tarde é possível que nos lembremos do cheiro daquele dia, daquela manhã ainda perfeita, de horas que não tinham a geometria da dor.

Cheguei a casa feliz. Feliz e normal, duas palavras que uso com parcimónia. Não é de agora, mas acentuou-se a forma como hesito antes de as dizer.

Fui à casa de banho e agarrei no telemóvel que tinha ficado ali esquecido. Quando abri o que a tecnologia me tinha reservado, li uma notícia sobre o estado de saúde da minha mãe que me alarmou. O dia normal desmoronou, escangalhou-se, e eu fiquei espatifada entre a dor e ainda uma réstia de esperança que me alimentou mais um ano entre safanões que levei e pequenas ajudas que queremos acreditar que podem ser divinas. Depois, mais tarde, zangamo-nos com o divino. Talvez demore a trégua.

A minha mãe tinha 78 anos, mas a Irina tinha 38. Durante algum tempo, vivi relacionando-as. Troquei algumas mensagens com esta rapariga destemida de sorriso que lhe chegava aos olhos, que disfarçavam qualquer tristeza súbita. A Irina e a minha mãe lutaram com unhas e dentes, mesmo quando os tinham de cerrar. A Irina gostava de uma frase minha, que insisti em replicar, que diz que o amor é a maior distracção da morte. Tinha a frase emoldurada para ela. Disse-me que a viria buscar para podermos tomar um café. É justo. Na ideia de um café pode haver tanto amor, que nos iríamos distrair da morte, de tudo o que nunca quisemos para as nossas vidas ou a dos outros: a dor.

Nem eu enviei a moldura à Irina nem ela a veio buscar. Talvez tenha ficado pendurada no nosso pensamento como prova de que aqui continuávamos e podíamos adiar (coisa que tanto gostei de fazer durante anos – adiar, esticar a corda).

Eu segui as dores daquela mulher que nunca conheci. Como segui as dores da mulher mais importante da minha vida: a minha mãe. Insisto agora na ideia de que entre os que se vêem nesta teia feita de dor e esperança se estabelece um código quase invisível. São palavras que se desenham apenas na nossa cabeça e não precisam de ser ditas, materializadas.

Estava na mesma casa de banho quando há uns meses, numa manhã que não tinha ainda nenhum contorno, abri o telemóvel e percebi que a Irina tinha morrido. O que senti está dentro desse código feito de palavras invisíveis. E as palavras nessa altura não encontram espaço para se acomodar: são um incómodo a que chamamos dor. Chorei por ela. Senti a violência do que não tem nome na altura do choque. Lembrei-me da moldura. Pensei se o amor era mesmo a maior distracção da morte. Ficou acentuada a minha querela com o divino.

Dois meses e meio depois, morreu a minha mãe. O que ainda sinto faz parte desse código escrito com palavras invisíveis. Ontem, encontrei uma amiga que perdeu o amor da vida dela. Demos um abraço em que, por momentos, couberam todas essas palavras não ditas mas que um abraço pode cobrir. Há em todos nós, os que vivem numa dor que parece crónica, uma linguagem sem voz. Intuímos o que o outro sente porque vivemos em perda. Será, por enquanto, apenas perda sabendo do tal privilégio que foi cruzarmo-nos uns com os outros. Termos nascido, casado, comungado do mesmo amor. Preciso de fazer as pazes com o divino e lembrar-me de que o amor é mesmo a maior distracção da morte.

A moldura continua ali. Não está só pendurada no meu pensamento. Será sempre da Irina.


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