Os Anos Super-8, de Annie Ernaux: a mulher, a casa e o mundo
Filme de resistência, de imagem não totalizante, Os Anos Super-8, de Annie Ernaux, mostra imagens que migram agora do espaço íntimo para o espaço público
Num tempo obcecado com a alta definição da imagem, em paralelo com a multiplicação de janelas em que cada um projecta a melhor versão de si, Os Anos Super-8 confronta-nos com o grão. É o grão na película — aqui e ali, em degradação cromática assumida, que pontua sequências escolhidas pela própria Annie Ernaux sobre a ruína de um casamento e a construção de si como mulher e escritora —, mas também o grão de uma vida problematizado(a) pela escrita. Esta escrita baseia-se no diário que Ernaux mantinha, e rememora e ressignifica aquele tempo em que a ascensão social a fez sentir enclausurada na nova condição de esposa burguesa. Foi quando, inicialmente em segredo, experimentou afirmar a sensibilidade e inteligência de si no mundo como escritora. O grão ficou impresso nos sorrisos — mais tristes do que solares — da mulher em processo de identificação. É Annie Ernaux antes de ser Nobel da Literatura, antes de ser a que queremos devorar — de quem queremos consumir os livros, mas também a história. Mas já é Annie Ernaux que rejeita ser peça decorativa na sala burguesa — nunca vemos os quartos, sintoma da falta de intimidade mesmo no “filme de família” — ou personagem da vida familiar encenada, transmutada em “happening teatral” (palavras dela) que a compra de uma câmara Super 8 criou, para começar a ser aquela que, num movimento de afirmação, usa o desejo de vingar os seus inscrevendo-o numa “história dos vencidos” contada na literatura.
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