O subproletariado português

Enquanto não conseguirmos pensar um sistema mais justo, continuaremos a aceitar a discriminação e a exploração daqueles que não procuram mais do que uma vida melhor.

“Tens amigos que estão em França há anos que ainda não têm documentos. Falas disso amiúde. Tens medo que eles sejam detidos ou deportados. Sabes que, para eles, a fronteira está por todo o lado, que pode surgir do nada.”

Estas palavras são do filme Nós Viemos, do cineasta de origem portuguesa José Vieira, que põe lado a lado imagens e relatos da diáspora portuguesa a caminho de França nos anos 1960 e de migrantes africanos que atravessam o mar Mediterrâneo nos dias que correm. Imigrantes subsaarianos a adaptarem-se às dificuldades das barreiras burocráticas e laborais seguidos de portugueses a serem resgatados por barcos de pesca no rio Bidassoa, que separa Espanha de França. As semelhanças são aterradoras.

A fronteira está por todo o lado. De facto, as fronteiras modernas não são linhas num mapa. Não são muros nem redes com arame farpado. São sistemas complexos dos quais apenas uma parte se materializa em vedações, e que se estendem bem para dentro dos territórios dos países. Um imigrante que tenha atravessado a fronteira irregularmente, ou cujo visto tenha caducado, não se vê livre das fronteiras só porque ultrapassou a linha que divide dois países. Está ainda sujeito à possibilidade constante de detenção e deportação, bem como a todo um sistema legal e burocrático que lhe retira os direitos há muito conquistados pelos trabalhadores do país de acolhimento.

Os atrasos do SEF

Em Portugal, o caminho mais utilizado para procurar a obtenção de uma autorização de residência é o artigo 88.º da Lei nº 23/2007, que regula a “Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional”. Este mecanismo permite que uma pessoa se candidate à regularização desde que, entre outras condições, tenha um contrato de trabalho.

Muitos estrangeiros encontram aqui uma forma viável de regularizar a sua situação neste país. No entanto, a inexistência de alternativas que não envolvam trabalhar sem cidadania por períodos longos gera situações terríveis em que imigrantes, desesperados por um contrato, são pressionados a aceitar quaisquer condições por parte dos seus empregadores, apenas para conseguirem ter os papéis certos para aceder ao 88.º.

De facto, nos últimos anos tem vindo a público um número impressionante de casos de migrantes empregados na agricultura, em várias partes do país, em condições extremamente precárias, trabalhando um número de horas que excede largamente o horário laboral, e às vezes mesmo sem remuneração. Na melhor das hipóteses, este sistema fomenta a exploração de pessoas já particularmente vulneráveis. Na pior, incentiva a escravatura.

Há, neste momento, mais de 200 mil pessoas à espera que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) avalie os seus pedidos e tornou-se regra, em vez de excepção, que o SEF exceda largamente o período legal de 90 dias para comunicar ao candidato uma decisão final. E isto não é um fenómeno recente. Em Agosto do ano passado, o Diário de Notícias reportava que o SEF estava, nesse momento, a avaliar pedidos com quatro anos.

São centenas de milhares de pessoas neste país a quem o Estado Português falhou.

O fardo dos imigrantes

Os estrangeiros em Portugal que não têm a sua situação regularizada vêem-se aprisionados neste limbo legal enquanto esperam pelos atrasos indeterminados e ilegais do SEF. Durante esse período, não possuem documentos oficiais, e isso dificulta significativamente o seu acesso a saúde, educação, habitação e até à possibilidade de reunificação familiar. Tudo isto com o espectro sempre presente da possibilidade, por estarem em situação irregular, de serem detidos nos infames centros de instalação temporária, num dos quais se deu o assassinato brutal do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em 2020, às mãos de inspectores do SEF. Estes espaços têm sido alvo de constantes críticas por parte do Mecanismo de Prevenção Contra a Tortura ao longo dos anos, bem como de inúmeras queixas de ex-detidos que incluem espancamentos, obstruções à representação legal e outras ilegalidades.

Além disso, até que consigam obter autorização de residência, a mobilidade destas pessoas está condicionada porque não lhes são dadas quaisquer garantias de que, se saírem do país, consigam tornar a entrar legalmente até que o processo esteja concluído. O resultado é que passam anos a viver e trabalhar em Portugal sem conseguirem ver os familiares e amigos que deixaram para trás.

Trancar as pessoas nesta prisão de incerteza e insegurança representa também um peso enorme para a sua saúde mental. Passar anos num país estrangeiro, com todas as dificuldades intrínsecas que isso acarreta, forçosamente afastado da família, com acesso condicionado aos direitos mais básicos, é solo fértil para ansiedade e depressão, que dificultam ainda mais a posição de extrema vulnerabilidade em que estes imigrantes já se encontram.

São centenas de milhares de pessoas que trabalham, pagam impostos e contribuem para a Segurança Social durante anos até poderem usufruir dos direitos que o seu próprio trabalho financia. Só no ano passado, a Segurança Social cobrou mais de mil milhões de euros em contribuições a estrangeiros que dela apenas beneficiaram numa pequena fracção. São uma espécie de subproletariado condenado a trabalhar nas condições mais desumanas e desprovido dos direitos laborais há muito conquistados em Portugal.

São centenas de milhares de pessoas neste país a quem o Estado português falhou.

É urgente mudar este sistema

Contra a violência que recai todos os dias sobre os imigrantes em Portugal, dezenas de colectivos e associações da sociedade civil portuguesa juntaram-se para organizar uma manifestação na próxima sexta-feira, dia 16 de Dezembro, no Largo de Camões, em Lisboa, às 18h.

Enquanto não conseguirmos pensar um sistema mais justo, continuaremos a aceitar a discriminação e a exploração daqueles que não procuram mais do que uma vida melhor. É necessário criar um modo de acolhimento que garanta igual tratamento, independentemente do passaporte.

Migrar não é um crime, e há que parar de tratar imigrantes como criminosos. Há que acabar com a detenção administrativa de migrantes. Há que criar condições para uma regularização célere e para o acesso à saúde, educação e outros serviços básicos. Há muito por fazer no caminho para a igualdade de direitos e muito do que temos pela frente vai requerer um debate público sério. Mas não há dúvida de que o primeiro passo é acabar de vez com os atrasos ilegais e desumanos do SEF, que aprisionam as pessoas neste ciclo de insegurança, ansiedade e precariedade. E, dada a iminente extinção desta força policial, nunca houve melhor oportunidade para o fazer.

José Vieira começou este texto e deixo-o também finalizá-lo:

“Em poucos anos, esta Europa onde estas crianças não são bem-vindas tornar-se-á a sua casa. A elas faço a mesma pergunta que às crianças da mão-de-obra estrangeira dos anos 60. Como podemos sentir-nos verdadeiramente daqui após termos cruzado tantas fronteiras?”

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