Seis propostas para lidar com as cheias nas cidades

Mais bacias de retenção, menos pressão urbanística, mais limpeza, menos novas construções. “O erro não aconteceu no dia 7 de Dezembro.” Nem no dia 13 que juntou mais água num terreno já saturado.

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Mau tempo provocou estragos em Lisboa LUSA/António Pedro Santos

Enquanto não avança em Lisboa a tão esperada construção de túneis contra cheias, outras medidas podem ser colocadas em prática para minimizar o impacte de inundações repentinas nesta e noutras cidades portuguesas. O PÚBLICO ouviu especialistas e todos são unânimes em considerar que estas obras são úteis mas não podem ser vistas como uma panaceia, constituindo apenas um de vários instrumentos de prevenção e adaptação.

Entre as soluções propostas está uma forte aposta em bacias de retenção e áreas verdes no tecido urbano. Tudo aquilo que permita ao solo absorver a água pluvial é bem-vindo, a exemplo do conceito que preside às cidades-esponja chinesas. Ainda nessa lógica de permeabilização dos terrenos e da drenagem das águas, os especialistas fazem o elogio de cidades mais limpas, com menos habitantes e construções.

Mais solos permeáveis

A capacidade ou não de um solo absorver água é um ponto fulcral quando se fala em prevenção de cheias. A porcelana que forra as nossas banheiras impede que a água seja absorvida, sendo o ralo a única via de escoamento da água que cai do chuveiro. Se abrirmos a torneira no máximo durante muito tempo e houver muitos cabelos a entupir o ralo, muito provavelmente teremos uma inundação na casa de banho. Assim são muitas das nossas cidades – vastas áreas impermeabilizadas e com apenas alguns raros pontos de drenagem que levam as águas para a tubagem subterrânea.

Cerca de 5% dos solos nacionais estão impermeabilizados. “Pode parecer pouco, mas é muito porque esta impermeabilização está concentrada nas cidades, onde há uma pressão urbanística incrível”, refere Pedro Nunes, coordenador das áreas de clima, energia e mobilidade da associação ambientalista Zero.

Melhor distribuição da população

Por outras palavras, temos demasiadas pessoas a habitar nesses 5% do território nacional, uma área que é tão capaz de absorver a água como a porcelana. “Isto cria uma carga humana brutal, aumentando a pressão sobre sistemas de água e saneamento”, recorda João Dias Coelho, presidente do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA). Quando uma depressão leva a que chuvas repentinas desabem do céu, a rede hídrica urbana simplesmente não consegue dar resposta.

“Quando Portugal tem 20% da população concentrada em 1,1% do território, segundo os Censos de 2021, é preciso também políticas públicas e instrumentos de ordenamento do território que façam inverter a concentração de população nas cidades e povoem o interior, porque isso é uma forma de reduzir a pressão urbana, a impermeabilização do solo e a população exposta aos efeitos das cheias”, afirma Pedro Nunes.

Reforma fiscal verde

A pressão urbanística e as falhas de ordenamento no território estão intimamente ligadas a “cedências políticas à especulação imobiliária”, recorda a geógrafa Judite Fernandes, da GEOTA. Daí que o presidente desta associação, João Dias Coelho, defenda uma reforma fiscal verde que desincentive as autarquias a dar sinal verde para construções em zonas de risco.

Se os impostos ligados ao sector imobiliário são as principais receitas das autarquias, argumenta o responsável do GEOTA, é “natural” que estas estejam interessadas em destinar cada vez mais terrenos à construção, mesmo aqueles inseridos em reserva ecológica nacional. “O que é triste é que as receitas obtidas com os licenciamentos não compensam os investimentos necessários para ampliação de redes de abastecimento e tratamento para servir os novos habitantes”, diz João Dias Coelho.

O presidente do GEOTA tem vindo a denunciar “a especulação imobiliária tremenda que tem facilitado em demasia a construção” em detrimento da criação e regeneração de zonas verdes. “A melhor medida de adaptação às alterações climáticas é suspender a construção [nos grandes centros urbanos]. Esta medida, a médio prazo, também contribui para a prevenção de cheias”, argumenta.

Bacias de retenção

“As bacias de retenção são obrigatórias”, defende ainda João Dias Coelho, presidente do GEOTA. Estas estruturas assemelham-se a “piscinas” naturais para onde podem ser drenadas a água das chuvas, diminuindo a pressão sobre a rede de escoamento e funcionando como um reservatório. Podem ser zonas secas usadas estrategicamente ou lagos artificiais inseridos em zonas verdes.

“Estas bacias podem ser associadas a áreas de lazer e espaços verdes envolventes. Funcionam como um lago artificial que pode tanto prevenir cheias no Inverno como ondas de calor no Verão”, explica a geógrafa Maria José Roxo, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

A geógrafa sugere que as bacias de retenção sejam localizadas nas partes altas das cidades, evitando assim que a água escorra pelas encostas, provoque aluimentos e se acumule nas zonas baixas. Se “enquadradas numa zona verde”, apresentam muitas vantagens: reduzem o caudal e a velocidade das águas durante eventos extremos, refrescam a zona envolvente nos dias quentes, permitem o reaproveitamento das águas pluviais para a rega de jardins, proporcionam bem-estar para a população e contribuem para aumentar a cobertura vegetal.

“Esta vegetação vai permitir a absorção de água pelo solo, a diminuição da poluição e o sequestro de carbono – saímos sempre a ganhar”, sublinha Maria José Roxo. Pelas mesmas razões, os especialistas encorajam a adopção de corredores verdes nos centros urbanos.

Limpeza de resíduos

Lutar contra cheias sucessivas é um desafio duplo graças ao “efeito cumulativo”. A geógrafa Maria José Roxo explica que “é muito difícil lidar com chuvas intensas sem interrupção” porque a quantidade de “material” que vai sendo arrastado pela água é quase um fluxo contínuo. Trata-se de folhas, plásticos, lixo deitado ao chão e resíduos que, com as rajadas de vento, saíram dos contentores. “E ainda pedras e terras que saíram das barreiras das estradas. Todo este material vai-se acumulando nas sarjetas. Limpam-se os detritos e, pouco tempo depois, há mais”, afirma a especialista.

Se, agora, é difícil enfrentar o efeito cumulativo das chuvas, que arrastam detritos e entopem sarjetas, o mesmo não se pode dizer da prevenção. “O erro não aconteceu no dia 7 de Dezembro, o erro foi antes”, diz Maria José Roxo. Para a geógrafa, é fundamental fazer a limpeza de resíduos preventivamente. “Recordo-me de ter partilhado nas redes a imagem de uma sarjeta completamente obstruída em Setembro”, diz.

Cultura de prevenção

“Infelizmente, não temos em Portugal uma cultura de segurança e prevenção”, afirma Maria José Roxo. A geógrafa questiona o porquê de enviarmos um SMS para a população sem incluir no texto orientações claras sobre como as pessoas em zonas de risco devem proceder. A mensagem enviada pela Protecção Civil, nesta terça-feira após as 14h00, informava assim a “continuação de risco de cheias e inundações”: “Proteja-se. Siga as recomendações das autoridades. Info: prociv.pt / 800 246 246 / ANEPC.”

“Mensagens como estas implicam ter um telemóvel e saber ir pesquisar no tal site, quando sabemos que um dos grupos vulneráveis – os idosos – por vezes não estão familiarizados com estes dispositivos nem têm conexão à Internet. Estas pessoas ouvem rádio e vêem televisão, precisam de orientações claras nesses canais”, sugere a professora da Universidade Nova de Lisboa.

Pedro Nunes, da Zero, sugere ainda que os cidadãos leiam com atenção as coberturas previstas em caso de eventos extremos quando subscrevem apólices de seguro.

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