“Não cortaram a rua onde estive porquê”? — uma hora no caos de Alcântara

Estou finalmente a caminho de casa, mas não consigo não pensar: porque não cortaram a rua onde estive? O que falhou no sistema de aviso? Ninguém estava preparado para isto?

Ainda estive no carro perto de 20 minutos a deliberar se seria este o momento mais indicado para sair de Lisboa rumo a Sul. O relógio do carro marcava 22h e alguns minutos – perdoem-me desde já os lapsos de memória, mas nunca esperei escrever um texto sobre esta noite, que até então tinha sido banal – e o GPS dizia-me que havia atrasos no acesso à ponte 25 de Abril, sem indicar exactamente onde. Oito minutos adicionados à minha viagem normal. É fazível, pensei.

Tinha chovido a tarde toda e a meteorologia continuava sem dar tréguas, mas a Avenida 24 de Julho, onde tinha passado uns minutos antes, estava transitável, ainda que a visibilidade fosse reduzida. Nos 20 minutos de compasso de espera que fiz no meu carro, a luz foi abaixo algumas vezes nas ruas perto do edifício da redacção do PÚBLICO, em Alcântara. Vejo a meteorologia no telemóvel: alertas laranjas e vermelhos, mas a agravar-se dali a umas horas. O melhor momento para sair era aquele, antes que piorasse. Não estava errada, mas também não antecipava o que ia encontrar.

O primeiro sinal foi uma fila descomunal. Pensei que fosse causada pelo semáforo, mas estava desligado. Teria sido pela falta de luz? Não há um sistema de redundância que permita que os semáforos continuem a funcionar nesta cidade? Só depois reparei na quantidade de carros que vinham no sentido contrário ao meu; na quantidade de pessoas que fizeram inversão do sentido da marcha. Percebi que alguma coisa se passava, mas pesei os prós e os contras: a água estava a acumular-se e a descer. Se eu descesse também, o que ia encontrar? O lugar mais seguro encontrava-se à minha frente, tinha de avançar.

Avancei até ao segundo semáforo, mesmo antes de chegar à estação de Alcântara-Terra. Tinha demorado 20 minutos para andar cerca de um quilómetro, talvez menos, sempre na primeira mudança, sempre com todo o cuidado. Foi aí que percebi que do meu lado direito havia um repuxo de água turva, provavelmente uma rotura ou um esgoto que deixou de conseguir escoar a água.

A água jorrava descontrolada tanto do meu lado direito quanto do lado esquerdo (embora não soubesse a origem) e reparei que o nível subia rapidamente. Na verdade, o que mais me espantou nesta situação toda foi a velocidade com que tudo aconteceu, uma questão de alguns minutos – que me pareceram ainda mais velozes por estar no meio do caos.

Ao meu lado, alguns carros começam a subir o passeio para chegar a um lugar seguro. Pondero segui-los, mas estou imobilizada. Reparo que já não há espaço na zona mais alta; penso que que me posso cruzar com algum pilarete semi-submerso. Escolho ficar onde estou, onde sinto a água a passar de um lado e do outro, a abanar cada vez mais o carro – o que se agrava de cada vez que uma carrinha dos bombeiros ou carros da polícia passam por mim. Por falar em polícia, reparo que o acesso de quem vem da ponte está cortado. Não cortaram este também porquê? Terão chegado tarde?

Vou avançando a custo. O meu objectivo é aproximar-me da entrada da estação de Alcântara-Terra, um pedaço de estrada mais elevado do que a avenida onde estou. Vejo um homem dentro de um Clio a tentar abrir a porta apesar de a água estar a submergir-lhe todas as rodas. Consigo aproximar-me e vejo que está a tentar tirar a água de dentro do carro com uma garrafa de água de 33 centilitros. Vejo também alguém dentro de um Mini que, intrépido, tenta fazer a avenida rumo à Quinta da Cabrinha. Só quando a água lhe tapa toda a matrícula traseira é que se dá por vencido e começa a fazer marcha-atrás, embora não seja claro se se está a movimentar pela força do carro ou pela força da água. A mim, resta-me esperar.

Olho em redor e pelas janelas dos carros vejo algumas pessoas assustadas; outras entediadas. Já era perto das 23h e eu, que já devia ter chegado a casa, ainda não tinha saído de Alcântara. Por volta desta hora também, reparo que o trabalho dos bombeiros começa a surtir efeito. Há menos água, já consigo avaliar melhor as minhas opções. Pelas 23h13, escolho tentar aceder à ponte.

O que encontro na via de acesso são esgotos abertos, pedras da calçada, carros parados em posições aleatórias, bombeiros cansados a tentar indicar a melhor via de saída. Do meu lado direito, para lá de um muro baixo, vejo o que era um parque de estacionamento completamente submerso, com as antenas dos carros à vista. Estou finalmente a caminho de casa, mas não consigo não pensar: não cortaram a rua onde estive porquê? O que falhou no sistema de aviso? Ninguém estava preparado para isto?

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