E… porque não a eutanásia?

Espera-se que uma lei que valide a eutanásia venha a constituir também um marco civilizacional.

A Lei 25/2012, de 16.07, que estabeleceu as bases do instituto jurídico Testamento Vital (T.V.), é considerada um avanço cultural, atendendo a constrangimentos educacionais, temperamentais e religiosos da nossa sociedade, onde o culto dos mortos e a indefinição em torno do significado da vida deram origem a interpretações díspares sobre a forma como a existência do homem deve e merece ser entendida. Juridicamente, o T.V. constitui o exercício de um direito na medida em que cada um tem “jus” à dignidade humana em todo o ciclo da sua vida. Assim sucede, nomeadamente, quando alguém, em estado terminal e podendo não estar em perfeito domínio da sua vontade e consciência, quer dispor como e em que condições deseja morrer, quando o decesso é inevitável.

Estado terminal significa uma situação patológica idónea, clinicamente comprovada, para conduzir à morte. Focando no dispositivo do artigo 2.º, n.º 2., a), b) e c) da Lei, o testador manifesta o seu desejo para que o seu falecimento seja digno, evitando que lhe sejam ministradas terapias a fim de prolongar artificialmente uma vida não consciente, em suma, por uma boa qualidade de morte, evitando um tratamento fútil, ou cuidados paliativos, com vista tão só para prolongar a vida, sustentando um estado vegetativo, de não retorno, ou suportar um sofrimento doloroso de nulo efeito recuperador – altura em que o paliativo mais se assemelha a uma agressão à vida do que o respeito por ela. Neste aspecto, o T.V. assemelha-se à ortonásia, que se desenvolve numa relação médico/paciente ou família, por via da qual se procede à suspensão ou limitação de tratamento que prolongue a vida em caso de doença em fase terminal ou incurável.

Sucede que, no caso da eutanásia, esta envolve um acto consciente, controlado e assistido para provocar ou acelerar a morte de alguém, mesmo quando esse alguém, num estado de não domínio da sua vontade, peça para que o processo da sua morte seja abreviado, por ex: para não sofrer ou evitar um estado doloroso.

Tanto o T.V. como a eutanásia têm como destinatário o paciente em estado terminal. O que os distingue é que no primeiro evita-se prolongar a vida e na segunda há uma acção para abreviar a vida. Enquanto não houver uma lei, a eutanásia constitui um crime, o T.V. não. Neste quadrante, uma questão basilar se coloca: “não prolongar a vida” não será sinónimo de “abreviar a vida”? Parece que sim. Na verdade, prolonga-se ou abrevia-se o que ainda existe. O efeito real tanto num como noutro caso é o mesmo: a morte.

Não deixa, por isso, de se estranhar a posição dos que advogam a inconstitucionalidade da lei que venha a reconhecer o instituto jurídico de eutanásia, quando não o fizeram tratando-se da Lei 25/2012, promulgada que foi pelo então PR – Aníbal Cavaco Silva. Note-se que a Constituição da República dispõe que a vida humana é inviolável (artigo 24º, 1.º). Ora bem. A vida só tem sentido num corpo que a sustenta. Violar é ‘tratar com desrespeito’ (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Nas circunstâncias apontadas, não libertar um corpo do estado moribundo, vegetativo ou da extrema dor, seria torturá-lo, humilhá-lo e oprimi-lo, e por via disso consagrar a negação da própria singularidade e grandiosidade da vida.

Espera-se que uma lei que valide a eutanásia venha a constituir também um marco civilizacional.

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