Reinvenção é o nosso nome do meio

Reinventamo-nos desde que existimos enquanto espécie. Tenho até para mim que o próprio evolucionismo não é mais do que a forma natural da reinvenção.

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"Até a Branca de Neve teve de se reinventar quando fugiu do palácio e foi viver na floresta com os sete anões" DR

Quando percebi que o tema da revista seria o poder de nos reinventarmos, senti uma espécie de arrepio. É que nos últimos tempos, não sei exactamente por que razão, o meu corpo passou a responder fisicamente a um conjunto de palavras e expressões que, de repente, se tornaram moda.

Reparem, esta situação não é inédita porque, há uns 15 anos, andava eu na escola de enfermagem, e começou a acontecer-me o mesmo com a palavra mais utilizada durante as aulas. E que palavra era essa? Holístico. Tudo, mas mesmo tudo, era holístico por ali. Tínhamos de olhar para o doente de forma holística porque o doente era um ser holístico num mundo holístico e já nenhum de nós encontrava sequer sentido no holístico que, no meu dicionário pessoal, se tinha tornado pouco mais do que a palavra rainha da banalização. E só quando acabei o curso, deixei tão desgraçada palavra para trás.

Felizmente, passei um longo período sem antipatizar com outras palavras em particular. Até que, há coisa de uns dois anos, o mal voltou a abraçar-me e, desta vez, em maior escala. Porque agora já não era só uma palavra, mas um conjunto delas. Uma espécie de doença que se agravou depois de um longo período de latência.

Disruptivo, por exemplo, provoca-me tremeliques no olho. E palavras em inglês metidas no meio de frases completas na língua de Camões? Tenham piedade. Eu não quero mudar o mindset, não quero saber se A faz match com B ou se o que acabei de dizer soou demasiado cringe. Mas pior do que isto só mesmo as expressões que tresandam a auto-ajuda e, aí, esta coisa do reinventar-se é capaz de estar num dos primeiros lugares do top.

Imagino que, a esta hora, quem lê estas palavras esteja a pensar no quão embirrante posso ser. E eu própria não queria ser assim, confesso. Mas é o meu corpo traidor que insiste em repudiar estas palavras que, de repente, parecem tomar conta dos discursos nacionais. Ou talvez seja mesmo só o meu mau feitio. O mesmo mau feitio que, já agora, me faz não respeitar o novo acordo ortográfico.

Mas adiante… Uma das razões por que não gosto da palavra reinventar-se é porque a vejo ser utilizada como a última Coca-Cola do deserto. De repente, uma pessoa reinventar-se parece uma novidade, uma coisa que só começou a fazer-se agora por esta geração de gente cansada que se vai reinventando. Mas sabem que mais? Reinventamo-nos desde que existimos enquanto espécie. Tenho até para mim que o próprio evolucionismo não é mais do que a forma natural da reinvenção. Mesmo biblicamente, Adão e Eva tiveram ou não de se reinventar quando foram expulsos do jardim do paraíso?

As mulheres reinventam-se quando são mães, os comerciais reinventam-se quando mudam de empresa, os doentes reinventam-se a cada diagnóstico de doença crónica. Até a Branca de Neve teve de se reinventar quando fugiu do palácio e foi viver na floresta com os sete anões.

Reinventarmo-nos faz parte daquilo que somos e é um dos nossos melhores e maiores mecanismos adaptativos. Não nos soubéssemos nós reinventar e há muito que teríamos sucumbido.

Quando dizemos, surpreendidos, que x ou y conseguiu reinventar-se, estamos apenas a constatar uma das mais marcantes características do ser humano. Sabem aquele provérbio que diz que num dia somos a gazela que foge e no outro o leão que a caça? É um bocadinho isto que me parece. A nossa vida é uma sucessão contínua de reinvenções.

E não é preciso passar da miséria à riqueza, não é preciso abandonar uma vida estável financeiramente para ir viver no interior do Alentejo a comer apenas o que plantamos ou conquistar qualquer feito digno de noticiário. Porque a verdade, mesmo que também tresande à auto-ajuda de que procuro tanto fugir, é que todos os dias, quando o sol nasce, temos a oportunidade de nos reinventar e, ainda que não reparemos, é quase sempre isso que fazemos.

Aquilo que somos é o resultado das nossas mudanças constantes, das mutações à nossa volta e dos desafios que experimentamos. Somos feitos de renovação. Somos feitos de renascimento. Reinvenção é o nosso nome do meio.

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