“O que ouvimos foram sininhos”: cidadãos insatisfeitos com resposta vaga das instituições europeias

Sete meses depois de entregues as mais de 300 recomendações dos cidadãos europeus sobre o Futuro da Europa, as instituições prestam contas do que foi feito num evento em Bruxelas.

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O português Sandro Almeida notou que os cidadãos tiveram “dificuldades de perceber as principais ideias do feedback” Philippe Buissin / Parlamento Europeu

Uma fasquia alta, mas sem grandes expectativas: a Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE), um grande trabalho de auscultação dos cidadãos europeus e de diálogo com as instituições, resultou em 49 propostas apresentadas a 9 de Maio deste ano e esta sexta-feira teve o seu primeiro (e talvez único) evento de feedback aos cidadãos, organizado em Bruxelas, sobre o trabalho feito a partir das recomendações.

A presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola, os comissários Dubravka Suica, Maros Sefcovic e Margaritis Schinas, da Comissão Europeia, e Mikulas Bek, ministro dos Negócios Estrangeiros da República Checa, em representação do Conselho da União Europeia, marcaram presença num evento em que se falou de muitas coisas - mas muito pouco sobre a verdadeira influência dos cidadãos (e das suas propostas) nos processos europeus. Além de mais de metade dos cerca de 800 cidadãos que participaram inicialmente nos quatro painéis temáticos da CoFoE, estiveram também presentes membros da plenária da Conferência, que reuniu eurodeputados, membros de parlamentos nacionais, representantes de organizações da sociedade civil, de sindicatos e parceiros sociais, assim como de instituições como o Conselho Económico e Social Europeu e o Comité das Regiões.

A comissária croata Dubravka Suica, que detém as pastas da democracia e demografia, anunciou com pompa: “temos muito boas notícias”. Mencionou uma comunicação da Comissão Europeia de 17 de Junho sobre a forma como o executivo estava a acompanhar as propostas da CoFoE, desde as que coincidiam com planos em curso até às que ainda serão avaliadas.

Suica, uma das vice-presidentes da Comissão Europeia, mencionou alguns exemplos de ideias já aplicadas, como as que foram integradas no Plano de Acção para a Juventude, aprovado no início de Outubro, e anunciou que o modelo dos painéis - que a presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen, já tinha anunciado que seriam integrados nos processos legislativos - será aplicado já em Dezembro, no contexto do desenho da futura estratégia europeia contra o desperdício alimentar. “Mais de 80% das propostas estão contempladas no plano da Comissão”, alega a comissária. “Vocês disseram-nos literalmente qual deveria ser o nosso trabalho para o próximo ano”, concluiu, perante várias caras desconfiadas.

Para a maioria dos cidadãos ouvidos ao longo do dia, contudo, esta não parece ser uma forma justa de apresentar a questão. “Muitos de nós tivemos dificuldades de perceber as principais ideias do feedback”, afirmou Sandro Almeida. O português aproveitou a sua intervenção para deixar três sugestões de elementos que não viu neste feedback: colocar o foco nas propostas, mostrando o progresso concreto de cada uma; deixar claras as prioridades de cada instituição, reconhecendo que “é impossível achar que todas as propostas vão ser implementadas ao mesmo tempo"; e ainda deixar claro qual é a “probabilidade de execução” das propostas que ainda não estão em andamento, justificando as escolhas, de forma a não criar falsas expectativas.

Esta última sugestão reflectia algo que tinha sido pedido logo no início dos trabalhos: “Espero que haja transparência total e acções concretas”, apelava um cidadão polaco. “Quando não for possível ou não quiserem pôr em prática, precisamos de saber porquê.”

O eurodeputado Guy Verhofstadt reconheceu que “é preciso comunicar melhor o que estamos a fazer”, avisando que ia pedir que os documentos de análise dos serviços de pesquisa do Parlamento Europeu fossem (finalmente) enviados para todos os 800 participantes dos painéis de cidadãos. “É o mínimo que podemos fazer.” O eurodeputado do grupo Renew (liberais) é um dos grandes apologistas de uma Convenção para a revisão dos tratados da União Europeia, ideia que acabou por ser apoiada pela CoFoE pelo facto de cerca de 25 recomendações (menos de 10% do total) requererem alteração dos tratados para poderem ser postas em prática. “Tudo está bloqueado devido à unanimidade”, queixava-se Verhofstadt perante os cidadãos.

Os cidadãos, contudo, insistiram em saber dos restantes mais de 90% de propostas que estão em condições de serem concretizadas dentro do actual quadro institucional. “O que ouvimos foram sininhos [jingle bells] das instituições”, ironizou um cidadão cipriota na sessão de encerramento, afirmando estar à espera de mais “input sobre como é que se seguirá a partir daqui”.

O Conselho da União Europeia, que reúne os chefes de Governo e ministros de cada Estado-membro, foi a instituição que esteve debaixo de escrutínio mais intenso. Já é conhecido que quase metade dos Estados-membros não subscreve à execução cabal das recomendações dos cidadãos - a questão da revisão dos tratados, em particular, é altamente divisiva. “Há algumas questões com as quais não concordamos”, reconheceu Mikulas Bek, em representação do Conselho, deixando a garantia: “Vamos continuar a debatê-las de forma transparente.” O ministro checo sublinhou, contudo, que “o retrato não tem que ser a preto e branco": a regra geral de decisão do Conselho é a maioria qualificada, o que significa que existe margem para concretizar diversas propostas dos cidadãos já a curto ou médio prazo.

Ficou por esclarecer quais das medidas actualmente possíveis serão concretizadas no imediato - isto é, para além daquelas que as instituições já tinham nos seus planos antes de existir CoFoE. Uma dúvida ficou patente em várias intervenções dos cidadãos, resumidas numa das frases citadas: “Onde há vontade, há um caminho. Mas há vontade?”

A jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu

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