Desvendado o motivo da misteriosa morte em massa de anfíbios no Gerês

Graças a uma “máquina do tempo”, cientistas descobriram como um peixe exótico ameaça uma lagoa no Gerês. Se a espécie invasora se mantiver, há risco de extinção local dos tritões-marmoreados.

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O tritão-marmoreado é, como outros anfíbios, uma espécie vulnerável ao ranavírus Eduard Solà/DR
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Recolha de amostras na lagoa dos Carris, no Parque Nacional Peneda-Gerês Ayala Botto/DR

Poderia ser uma história de detectives, mas é pura ciência. Em 1998, foi registada a morte em massa de anfíbios numa lagoa do Parque Nacional Peneda-Gerês. Nos anos seguintes, o trágico episódio repetiu-se. As pistas de que os cientistas dispunham apontavam para um responsável: um vírus agressivo presente naquele ecossistema. À medida que a investigação avançava, novos dados emergiram e provocaram uma reviravolta.

Mais de duas décadas volvidas, ficamos a saber que, afinal, havia um outro culpado. Os cientistas ficaram surpreendidos quando, ao analisar os dados, perceberam que o tal vírus estava presente na lagoa das Minas dos Carris desde os anos 1980 – ou seja, muito antes dos eventos de mortalidade em massa.

“Foi este o dado que virou a história do avesso”, afirma ao PÚBLICO o investigador Gonçalo M. Rosa, primeiro autor do artigo, publicado na revista científica Biological Conservation, que mostra o percurso de uma equipa de investigadores para descobrir a razão que levou ao declínio dos anfíbios. O tritão-marmoreado (Triturus marmoratus) foi o mais afectado.

O agente patogénico em causa é o ranavírus, um dos que mais afectam anfíbios, mas também répteis e peixes (sobretudo as espécies de interesse comercial). A ranavirose é uma doença que causa úlceras, hemorragias e até necroses de pele. A sua chegada a um ecossistema pode indicar um futuro difícil para a comunidade, mas, na lagoa dos Carris, tudo indica que o vírus era endémico – ou seja, tornou-se frequente nos anos 1980 sem destruir a população hospedeira.

Se o vírus já estava ali há quase duas décadas e não houve, nesse período, registos de mortes em larga escala, o que poderia então explicar os eventos trágicos observados a partir do fim dos anos 1990? Teria de haver uma outra razão. A equipa liderada por Gonçalo M. Rosa partiu então à procura de outras pistas.

“Surge então uma pergunta: como foi parar esse vírus a uma das zonas mais remotas do país? A lagoa dos Carris fica a cerca de 1500 metros de altitude”, refere Rosa, investigador não só do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c), da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, mas também do Instituto de Zoologia da Sociedade Zoológica de Londres, no Reino Unido.

Os cientistas verificaram então que uma população de perca-sol (Lepomis gibbosus) foi introduzida no Peneda-Gerês no final da década de 1990. Trata-se de um peixe nativo da América do Norte que foi trazido para a Europa para fins ornamentais (tem escamas irisadas e, por isso, é apreciado) e utilização na pesca desportiva.

“Não sabemos como foi ali parar mas pode ser sido alguém que julgou tratar-se de um peixe bonito ou útil para se ter num lugar tão remoto”, sugere o cientista Ayala Botto, também autor do estudo.

“Naturalmente que todos os dedos apontaram para a perca-sol como culpada pela introdução do novo vírus, e a história parecia estar resolvida. Esta era a nossa hipótese e explicava facilmente o declínio dos anfíbios naquele sistema”, explica Gonçalo M. Rosa, numa resposta enviada por e-mail ao PÚBLICO.

Apesar de todas as peças parecerem se encaixar, a equipa continuou a investigação para tentar comprovar esta hipótese de declínio da população – desta vez usando uma espécie de “máquina do tempo”.

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A lagoa das Minas dos carris fica a cerca de 1500 metros de altitude Gonçalo M. Rosa/DR

Uma máquina do tempo

“Ao lidar com eventos de mortalidade, muitas vezes é impossível comprovar declínios devido à falta de dados históricos. Surtos de doenças ocorrem naturalmente na natureza sem que isso implique o declínio de uma espécie ou população hospedeira. Como ainda não se inventou uma máquina do tempo, como podemos saber o estado das populações antes dos surtos?”, questiona Gonçalo M. Rosa.

A solução encontrada pela equipa foi estudar o acervo do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. A instituição conserva diversos tritões que foram, a propósito de estudos anteriores nos anos 1980, colectados em trabalhos de campo no Gerês e trazidos para o edifício na Rua da Escola Politécnica.

Esta é a nossa máquina do tempo! Tínhamos ali a possibilidade de rastrear esses bichos e saber se já estavam infectados, confirmando se a perca foi ou não responsável pela introdução do vírus”, conta o líder da investigação.

Recorrendo a espécimes actuais colectadas no Gerês e, paralelamente, aos indivíduos conservados em etanol no museu foi possível fazer testes genéticos e estabelecer comparações para compreender melhor o caso.

Aos espécimes que estavam bem preservados foi cortada “apenas a pontinha do dedo” para não danificar o acervo. O mesmo foi feito com os exemplares vivos (no caso dos girinos, a amostra adveio da excisão da extremidade da cauda). Já às percas-sol, sendo espécies exóticas que não poderiam ser devolvidas à lagoa, foi aberto o fígado para verificar se estavam ou não infectadas com o ranavírus.

“A minha mãe teve de levar com extremidades de dedos de anfíbio no frigorífico de casa durante a investigação”, Ayala Botto conta ao PÚBLICO, numa conversa telefónica. O esforço da equipa, que desenvolveu tanto o trabalho de monitorização no Gerês como o estudo das amostras e a análise dos resultados, acabou por valer a pena. O puzzle ficou completo e a peça que faltava não era tão óbvia assim.

As análises mostraram que a estirpe do vírus presente na perca-sol era diferente daquela que provocou o colapso dos tritões-marmoreados. Esta conclusão veio deitar por terra a hipótese inicial de que os peixes exóticos foram os veículos de introdução de ranavírus. Contudo, não ilibou de vez a perca-sol.

“Negada esta hipótese, outra surgiu: a perturbação provocada pela perca-sol enquanto novo predador na comunidade. Os resultados apontaram para uma sinergia diferente: a pressão adicional de predação teria aumentado os níveis de stress e conduzido a uma disrupção do sistema imunitário dos tritões, provocando, consequentemente, um desequilíbrio na sua relação com o ranavírus e o aumento da susceptibilidade à doença”, esclarece a nota de imprensa do cE3c, desvendando assim o misterioso declínio de anfíbios na lagoa de Carris.

Ayala Botto explica, por outras palavras, que “a introdução de uma espécie invasora foi o suficiente para desestabilizar o sistema e levar uma das espécies quase à extinção [local] e ameaçando muitas outras”.

Risco de extinção local

Os diversos trabalhos de campos permitiram verificar o desaparecimento de cerca de 90% da população de tritões-marmoreados na lagoa de Carris. Até hoje, a comunidade de anfíbios não conseguiu recuperar dos surtos de ranavirose ocorridos há mais de duas décadas.

Projecções da população destes anfíbios nos próximos 100 anos revelam que a perca-sol, se não for removida da lagoa, levará à extinção local da espécie T. marmoratus.

Este estudo científico vem mostrar como a introdução de espécies exóticas está associado a doenças infecciosas emergentes, uma associação pouco óbvia, mas que se tornou mais aparente durante a pandemia de covid-19.

“O aumento de casos de doenças emergentes tem sido responsável pela perda de biodiversidade em todo o mundo, afectando um grande número de espécies (para além de nós, humanos, com a covid-19, por exemplo). Mas tendemos a olhar para surtos (ou epidemias, epizootias e pandemias) apenas como resultado de uma introdução de um agente patogénico num novo habitat”, sublinha Gonçalo M. Rosa.

Raramente pensamos na introdução de espécies invasoras como desestabilizadoras de ecossistemas. No caso do Gerês, as percas-sol não trouxeram o vírus, mas criaram as condições ideais para que este agente patogénico se instalasse e provocasse uma altíssima taxa de mortalidade entre os anfíbios.

O artigo da Biological Conservation tem ainda o mérito, segundo os autores, de nos lembrar da importância dos acervos museológicos, tantas vezes vistos como meros depósitos cheios de pó.

“Os espécimes preservados em museus contam em si uma história, falam-nos de um tempo e contêm muita informação que está apenas à nossa espera para ser revelada. Este foi apenas um exemplo de que o estudo do passado é uma chave poderosa para entendermos o presente e melhor definirmos o futuro”, conclui o investigador principal. Sem esta “máquina do tempo”, não teria sido possível desvendar o misterioso declínio dos anfíbios da lagoa de Carris.

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