O novo plano ferroviário nacional: lições da História da Tecnologia (II)

A História não se repete, nem permite prever o futuro, mas fornece conhecimento relevante sobre a gestão passada de infraestruturas críticas, como o caminho de ferro.

Nos últimos dois meses, ocorreram dois acontecimentos que farão parte da história do caminho de ferro em Portugal e que marcarão também o seu futuro: a apresentação da linha ferroviária de alta velocidade entre Porto e Lisboa e a apresentação do plano ferroviário nacional.

Em perspetiva histórica, são discerníveis paralelos entre aqueles dois momentos e outros episódios do processo de implementação da ferrovia no século XIX, quando o caminho de ferro foi encarado como um investimento estruturante para o país e quando foram assentes as principais linhas da rede. A História não se repete, nem permite prever o futuro, mas fornece conhecimento relevante sobre a gestão passada de infraestruturas críticas, como o caminho de ferro. Este conhecimento tanto deve informar os decisores, como servir ao público que vai pagar e usufruir do investimento.

As infraestruturas críticas, além da sua dimensão técnica, possuem uma vertente discursiva, ligada à retórica dos seus promotores, que acompanha a sua implementação e realça a sua criticidade, urgência ou impacto futuro.

Esta dimensão discursiva esteve presente nas intervenções dos agentes que participaram naqueles eventos, designadamente o primeiro-ministro, António Costa, e o ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos. Todos partilharam de um certo determinismo tecnológico e foram unânimes em salientar os efeitos do investimento (que praticamente foram tomados por garantidos): da maior coesão territorial ao contributo para a descarbonização, passando pela aproximação à Europa e por um abstrato conceito de progresso. Pedro Nuno Santos usou mesmo o termo “revolução” para descrever o programa que se planeia.

No passado, progresso e revolução foram também prometidos pelos promotores do caminho de ferro. Em 1863, Rebelo da Silva, membro da câmara alta do Parlamento, antecipou “uma grande revolução no sistema de parte das nossas culturas […] um dos efeitos logo próximos da abertura e circulação da via-férrea que está para nos ligar com a Espanha”. Quinze anos depois, o político e engenheiro João Crisóstomo, na apresentação de uma proposta de plano ferroviário nacional, argumentou que “a civilização, riqueza e progresso […] dependem essencialmente deste maravilhoso sistema de transporte”.

As semelhanças retóricas nos discursos presentes e passados sobre a ferrovia não se ficam por aqui. O ministro da Infraestruturas considera a alta velocidade “um projeto que mudará a face do país de forma permanente”, tal como Fontes Pereira de Melo, em 1855, asseverou que “o caminho de ferro do norte construído, transforma de tal sorte as circunstâncias económicas do nosso país, que o há de tornar desconhecido a nós mesmos”. Ambos lamenta(ra)m os receios associados aos grandes investimentos em obras públicas (“Espanta-nos, que seja possível um caminho de ferro; aterra-nos esta ideia. Pois nós, indignos mortais, somos porventura dignos de ter um caminho de ferro”), apelando a que se abandone “esse instinto tão nosso de achar que os objetivos são sempre demasiado ambiciosos para o nosso povo”. Deixo ao leitor o desafio de identificar a que estadista pertence cada uma daquelas citações.

A urgência em iniciar a construção – frequentemente utilizada como argumento na discussão de infraestruturas críticas – foi também invocada por Pedro Nuno Santos (“não podemos desperdiçar esta oportunidade, não podemos adiar mais, nem hesitar mais”), ainda que não de forma tão dramática como fez, em 1852, o deputado Casal Ribeiro, para quem “a questão do caminho de ferro é para nós uma questão de vida ou de morte”.

O primeiro-ministro vincou a importância da ferrovia para “desempenharmos a função que é a nossa função histórica: sermos o interface entre o Continente [Europa] e o enorme mundo atlântico”, fazendo lembrar o discurso de abertura das cortes de 1851 da rainha D. Maria II, que afirmou a sua crença de que o caminho de ferro restituiria “a Lisboa o empório central dos dois mundos, entre os quais está situada”.

Com esta reflexão não pretendo insinuar que o processo atual de investimento ferroviário irá ser igual ou irá cometer os mesmos erros do que aquele verificado no século XIX. Aliás, o próprio plano ferroviário nacional constitui uma preparação para o investimento que nunca se verificou em Oitocentos (só no início do século XX um plano geral de rede foi aprovado pelo governo e pelo Parlamento). Outra boa prática atual foi a audição dos interesses locais e o estabelecimento de um consenso partidário amplo e prévio, tanto sobre o plano como sobre a alta velocidade, que, em princípio, impedirá que a política ferroviária nacional ande ao sabor das mudanças governamentais, como aconteceu no tempo da monarquia. Adicionalmente, como é óbvio, hoje, o conhecimento do território, as soluções tecnológicas e o acesso ao capital permitem uma planificação e construção mais eficazes.

O que a perspetiva histórica oferece é a demonstração da continuidade de alguns processos históricos e de algumas práticas retóricas, que necessariamente realçam a importância do technical fix e empolam os benefícios do investimento, que ou não se concretizarão de todo ou só serão usufruíveis a longo prazo. Foi o que aconteceu com o investimento ferroviário no século XIX, que só ao fim de algumas décadas, e depois de alguns percalços técnicos e financeiros, contribuiu para o desenvolvimento do país. Esta reflexão não nos deve desmotivar enquanto sociedade para um investimento que, sem dúvida, é útil e necessário, mas sim precaver para um possível caminho que não será o antecipado e passará por várias ilusões e desilusões antes de começar a contribuir para o país e para os seus cidadãos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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