O novo plano ferroviário nacional: lições da História da Tecnologia
O importante é que os critérios para a escolha final sejam claros, os estudos técnicos sejam disponibilizados publicamente, todo o processo de decisão seja transparente e participado e que no final se tome uma decisão, evitando uma reedição da novela Novo Aeroporto de Lisboa.
No passado dia 19 de abril, foi apresentado no LNEC, na presença do ministro da tutela e representantes dos principais operadores e reguladores do sector (CP, IP, Medway, IMT), o projeto para a elaboração de um plano ferroviário nacional. A ideia foi apresentada como algo de completamente novo na história do caminho-de-ferro em Portugal. No discurso de abertura da sessão, o secretário de Estado das Infra-Estruturas, Jorge Delgado, afirmou tratar-se do “dia em que arranca o processo de criação do primeiro – repito, primeiro – plano ferroviário nacional em Portugal”, confessando ainda alguma “emoção” e “uma ponta de vaidade” por ter conquistado “um lugar na história da ferrovia portuguesa que já ninguém me tira [sic]”. Não querendo pôr em causa a mais-valia dos esforços dos envolvidos neste projeto, a verdade é que no passado existiram vários planos ferroviários nacionais, um deles inclusive com suporte legal.
A elaboração de um documento que norteasse a ação dos governos na construção da malha férrea nacional foi um objetivo dos tecnocratas portugueses desde que a construção se iniciou na década de 1850. Em 1854, 1858, 1862, 1865, 1871, 1873 e 1875, o Conselho Superior de Obras Públicas e Minas e o seu sucessor, a Junta Consultiva de Obras Públicas e Minas, elaboraram várias propostas de rede, remetidas ao governo. Apesar destes esforços, a construção era feita ao sabor das circunstâncias e do interesse de empreendedores privados.
Entre 1876 e 1878, a Associação de Engenheiros Civis Portugueses (antepassada da Ordem dos Engenheiros) promoveu uma discussão entre os seus associados para elaborar um plano ferroviário nacional a submeter ao Ministério das Obras Públicas. As propostas apresentadas foram sistematizadas num mapa ferroviário, que, porém, não gerou consenso. Um dos membros da associação, o engenheiro Lourenço de Carvalho, tomando partido da sua posição de ministro das Obras Públicas, rejeitou a sugestão dos seus camaradas e apresentou ao Parlamento um mapa de sua própria autoria, com algumas diferenças importantes, sobretudo no nordeste do país. Contudo, a sua proposta de lei nunca foi discutida no Parlamento. De qualquer modo, embora sem força de lei, o plano de Lourenço de Carvalho inspirou a expansão da rede nos anos seguintes.
Em finais do século XIX, o ministro das Obras Públicas, Elvino de Brito, propôs ao Parlamento um conjunto de medidas para densificar a malha férrea nacional. A maioria que apoiava o governo aprovou o diploma que se transformou na lei de 14 de julho de 1899. Em seguida, três comissões nomeadas pelo governo reuniram informação fornecida pelos municípios e por associações comerciais, industriais, militares e técnicas e, até 1907, elaboraram um plano ferroviário nacional, o primeiro com força legal na história da ferrovia em Portugal. O mapa previa adicionar pouco mais de 3,000 km à rede existente, com um custo a rondar os 70 mil contos de réis (cerca de 1100 milhões de euros atualmente). Nas décadas seguintes, a rede seguiu sensivelmente este plano, ainda que muitas linhas tivessem ficado por fazer, sobretudo nas zonas entre o Douro e o Tejo.
Já na década de 1930, foi proposto um novo plano de rede, que, todavia, esbarrou na concorrência que o automóvel já movia à ferrovia e na necessidade de direcionar os recursos disponíveis para a conservação e melhoramento das linhas existentes. Posteriormente, a estagnação do investimento ferroviário esvaziou de sentido qualquer tentativa adicional de planificação.
Serve este pequeno relato histórico para ilustrar que a questão da planificação da rede férrea portuguesa não é nova, havendo já muita experiência passada que pode (e deve) beneficiar a tomada de decisões presente. A este propósito, os académicos britânicos, especialistas em transportes, Colin Divall, Julian Hine e Colin Pooley, afirmam que, no que respeita à planificação dos transportes, uma melhor compreensão dos desafios e contextos passados conduz a decisões atuais mais eficazes. Para sustentar este argumento, realçam que os sistemas de transportes que usamos hoje são surpreendentemente duradouros e, sem embargo das múltiplas inovações de que usufruíram, mantêm-se essencialmente os mesmos que no passado, oferecendo os mesmos serviços e satisfazendo as mesmas necessidades de transporte (obviamente de forma mais rápida, eficiente e confortável). Neste sentido, acaba por não surpreender que os objetivos do plano apresentado no LNEC sejam muito semelhantes aos propostos no século XIX: expandir a rede para encolher o país, modernizar linhas, resolver estrangulamentos ou servir capitais de distrito e cidades com mais de 20 mil habitantes (“centros de produção e consumo”, como referiam documentos passados). As únicas diferenças em relação a debates anteriores são a inclusão de preocupações ambientais e a exclusão de questões com a defesa militar do território, que, felizmente, já não são uma preocupação tão premente como outrora.
O meu objetivo neste texto não é tanto fazer uma análise exaustiva dos reais contributos da História da Tecnologia para o debate atual (que exigiria um espaço muito maior que uma coluna de opinião), como chamar a atenção para a necessidade de incluir o vasto conhecimento histórico sobre a implementação da ferrovia em Portugal neste processo de decisão. Em todo o caso, gostaria de realçar um conjunto de pontos, também tocados por vários intervenientes da sessão de lançamento do plano ferroviário nacional.
Desde logo, é refrescante perceber que algumas lições do passado foram em grande medida aprendidas, como é um bom exemplo a própria estratégia de definir antecipadamente as prioridades e moldes do investimento, o que, como muitos sublinharam, aumentará igualmente a credibilidade nacional face aos nossos parceiros europeus. A vontade de ouvir várias partes interessadas na questão, como estipulou Elvino de Brito em finais do século XIX, é outra boa prática. Revela não só um espírito democrático de incluir os cidadãos nas discussões que lhes afetam o futuro, mas também uma preocupação com aspetos não-técnicos da ferrovia, que devem ser incluídos no seu planeamento. Adicionalmente, o objetivo de criar interseções de linhas que fechem malhas ferroviárias em alguns pontos do país parece querer cumprir um desígnio dos planeadores oitocentistas e ao mesmo tempo corrigir um erro histórico dos decisores da rede. De facto, quando usamos o termo rede para nos referirmos ao complexo ferroviário português, fazemo-lo por facilidade de linguagem, já que o nosso sistema se assemelha mais a uma árvore que se ramifica, do que a uma malha com diversas interseções, o que, historicamente, limitou a capacidade de criação de sinergias regionais. Por fim, é positivo ver que depois de um período de estagnação no sector, não se irá regressar a um entusiasmo exacerbado e utópico (como existiu durante o Fontismo) de querer levar o caminho-de-ferro a todos pontos do país.
Vários intervenientes na sessão enfatizaram a necessidade de recorrer à tecnologia ferroviária apenas quando esta fosse a mais eficaz do ponto de vista económico e ambiental. Isto significa que a reconexão de algumas cidades à malha férrea nacional não pode ser feita pelos canais entretanto encerrados, por muito que estes evoquem saudosas memórias a muitos portugueses. Esta questão é particularmente visível em Trás-os-Montes, onde uma nova ligação deve procurar ligar Bragança, Chaves e Vila Real pelo percurso mais curto ao Porto. As antigas linhas de bitola métrica do Tâmega, Corgo, Tua e Sabor foram projetadas em finais do século XIX e inícios do século XX para responderem a necessidades dessa altura, onde velocidades de 30km/h eram algo de espantoso. Podem, contudo, fomentar algum tráfego regional ou – como muito bem referiu o ministro Pedro Nuno Santos – a própria indústria do turismo ferroviário, de grande potencial no nosso país.
Por outro lado, a sessão deu a entender que a ferrovia deve continuar a inclinar o país para o litoral, sobretudo para Porto e Lisboa, ao invés de fomentar ligações inter-regionais no interior. Há, porém, a possibilidade de estas ligações serem asseguradas por outros tipos de mobilidade, algo que só a evolução do debate permitirá responder. Igualmente se mantém a fé na cooperação por parte da vizinha Espanha na questão das linhas transfronteiriças. Naturalmente, Pedro Nuno Santos saberá melhor que ninguém a informação que recebe dos seus congéneres espanhóis, mas convém não esquecer que, tal como Portugal, Espanha tem as suas próprias infra-estruturas complementares ao caminho-de-ferro, para onde deseja direcionar o tráfego ferroviário. Por esta razão, historicamente, a fronteira foi muitas vezes um obstáculo mais momentoso que o mais profundo dos vales ou a mais alta das montanhas. Ainda que atualmente o contexto geopolítico seja completamente diferente, importa questionar que interesse terá Espanha em facilitar ligações transfronteiriças que prejudiquem os seus próprios portos ou aeroportos.
Os estudos de História da Tecnologia sobre a implementação do caminho-de-ferro em Portugal (e não só) alertam ainda para outras situações passíveis de voltar a ocorrer na discussão e implementação do plano ferroviário. Durante a sua apresentação, quase todos os participantes falaram da necessidade de estabelecer consensos entre atores sociais e políticos. Muito certamente, este consenso nunca se verificará, tal como nunca se verificou no passado: porque as regiões quererão um via-férrea que invalida a via-férrea da região vizinha; porque um autarca exigirá que o comboio de alta velocidade pare na sua autarquia; porque os peritos apresentarão soluções diferentes (segundo visões diferentes dos objetivos a cumprir, filiações partidárias ou ligações territoriais que possuam); porque haverá quem ache que os custos da construção e operação deverão recair sobre os utilizadores e não sobre todo o país… Esta afirmação não serve para desmoralizar os participantes e interessados na questão, mas para alertar para a ilusão de se chegar a um consenso generalizado.
Na discussão, existirá muita política e tecnopolítica, isto é, a prática estratégica de planear tecnologia para atingir objetivos políticos. No final, considerandos políticos sobrepor-se-ão aos quesitos técnicos, algo que não nos deve alarmar, uma vez que em democracia a decisão deve caber aos órgãos eleitos pela população e não a técnicos não-eleitos. O importante é que os critérios para a escolha final sejam claros, os estudos técnicos sejam disponibilizados publicamente, todo o processo de decisão seja transparente e participado e que no final se tome efetivamente uma decisão, evitando uma reedição da novela Novo Aeroporto de Lisboa, que decorre há décadas. A história mostra ainda que os benefícios do investimento ferroviário tendem a verificar-se no médio-longo prazo. Embora este conhecimento seja um fraco consolo para as populações que vivem nos anos mais imediatos aos gastos do primeiro estabelecimento, só uma visão de largo prazo permitirá medir efetivamente os resultados do plano – que, aliás, não será totalmente realizado; haverá sempre um conjunto de linhas que, por uma qualquer razão, não sairá do papel.
Outra vertente estudada pela História da Tecnologia respeita à conjugação de sistemas tecnológicos, como a ferrovia, com outros subsistemas. O historiador da tecnologia, Melvin Kranzberg, teorizou este fenómeno na terceira das suas seis leis, que estipula que a tecnologia vem em pacotes (packages), ou seja, envolve e envolve-se com diferentes processos, componentes e subsistemas. A aplicação desta lei é visível em várias dimensões das tecnologias de transporte, mas aqui limitar-me-ei à questão da intermodalidade.
Esta era uma problemática que já ocupava as mentes dos planeadores do século XIX, que procuravam a melhor forma de conjugar a ferrovia com uma rede de estradas em construção, com os centros das cidades ou com subsistemas de transportes (como, por exemplo, os americanos), com uma muito limitada disponibilidade de recursos financeiros. Décadas mais tarde, a ausência de um plano intermodal fez com que rodovia e ferrovia se digladiassem ao invés de cooperarem para um sector dos transportes mais eficaz.
Atualmente, a intermodalidade é uma questão mais complexa, devido à multiplicidade de subsistemas complementares e à necessidade de concretizar o objetivo da neutralidade carbónica (que implica uma menor utilização do automóvel), mas cuja operacionalização é facilitada pela conjugação com os modernos sistemas de informação. Em comum com o passado, temos a exiguidade de recursos para executar um novo e ambicioso plano ferroviário e eventuais sistemas acessórios, não se compreendendo assim as opções de intervenção na TAP (que poderá ter um custo superior a um terço do valor previsto para o projeto apresentado no LNEC) e de construir mais um aeroporto, quando se antecipa que o investimento anunciado ponha fim aos voos de extensão inferior a 600km.
Por fim, o planeamento atual da ferrovia nacional deve ter em atenção as múltiplas ocasiões na história em que fatores não-técnicos assumiram protagonismo na tomada de decisões sobre questões tecnológicas (aquilo que Kranzberg estipulou na sua quarta lei). Talvez o aspeto que, no futuro do plano ferroviário português, melhor ilustra esta questão seja a relação dos portugueses com o carro e o comboio. O ministro das Infra-Estruturas praticamente deu a entender que bastava aumentar e melhorar o serviço ferroviário para que os portugueses de imediato trocassem o automóvel pelo comboio – acrescentando, filosoficamente, que o primeiro era o símbolo do individualismo egoísta da sociedade atual, ao passo que o segundo representava o triunfo do coletivo, uma declaração algo estranha para um membro de um governo que alugou recentemente 125 automóveis. Seja como for, é crucial não olhar para este debate como exclusivamente técnico e levar em linha de conta os contornos sociotécnicos que o compõem (neste caso, a afeição da população portuguesa por outros meios de transporte, como o carro ou o avião), como tantos exemplos históricos o demonstram.
Para concluir, é de louvar a iniciativa do ministério de Pedro Nuno Santos de voltar a investir no sector ferroviário, alinhando o país com o que se faz na Europa. De igual modo, é de enaltecer a vontade de ouvir diversos stakeholders, cujos contributos conduzirão decerto a um plano mais adequado às necessidades de Portugal. Deseja-se também que o processo de decisão conte com os conhecimentos da evolução histórica das tecnologias de transporte em Portugal, que, ao contrário do que muitos pensam, não é mera cultural geral, mas sim informação útil e válida sobre como desafios passados foram ultrapassados no passado e poderão voltar a ser ultrapassados no presente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico