O elefante na sala, mundos paralelos e computação quântica

A demanda e competição pelo Conhecimento progride, de forma irrequieta e entusiasmante, e, quem sabe, afinal Einstein ainda poderá ter razão.

Em 1925, um jovem de 23 anos chamado Werner Heisenberg, passeando numa ilha inóspita do mar do Norte, teve um primeiro vislumbre sobre o “estranho mundo quântico”. Em 2022, o tema continua a motivar discussões apaixonadas não só no meio científico, mas também no cidadão comum, intrigado com notícias de que o mais recente Prémio Nobel da Física atribuído aos trabalhos de Aspect, Clauser e Zeilinger vem reforçar a ideia de que Albert Einstein, ícone mediático do espírito científico, falhou teimosamente nas suas intuições.

Afinal, e ao contrário das convicções de Einstein (e de muitos outros, diga-se), parece que na Natureza podem acontecer arrepiantes efeitos à distância, ou seja, que um acontecimento físico num dado local poderá causar instantaneamente efeitos noutro local arbitrariamente distante, contradizendo a ideia de que na Natureza nada se pode propagar com uma velocidade superior à da luz. A mera afirmação de que algo pode ocorrer simultaneamente em lugares afastados do universo não tem sentido absoluto na Teoria da Relatividade, e já contradiz princípios de localidade. É, pois, compreensível que Einstein, o criador da Teoria da Relatividade, cujo princípio fundamental é a finitude da velocidade da luz e sua invariância em todos os pontos de observação, tivesse sentido um desconforto visceral ao imaginar tais efeitos à distância.

Até que seria fantástico se tais efeitos instantâneos existissem, isso permitiria, quem sabe, que certos cenários de ficção científica se pudessem tornar realidade. A superação do limite da velocidade da luz traria certamente fantásticas aplicações nas telecomunicações e, quem sabe, nas viagens espaciais. É que dizer “Pois...” por rádio entre a Terra e Marte é longe de instantâneo, leva no mínimo 20 minutos a chegar, o que dificulta qualquer conversa.

Mas é mesmo verdade? Então este Nobel vem confirmar que a Teoria da Relatividade, que é usada de forma rotineira na ciência e tecnologia atual, desde a rede GPS à compreensão da história e estrutura do Universo, está afinal errada?

A confusão e a dúvida estabelecem-se e proliferam nas redes sociais.

É preciso dizer que grande parte das dificuldades sobre os arrepiantes efeitos à distância resulta simplesmente de um elefante na sala, uma inconsistência, uma lacuna na física quântica, normalmente colocada debaixo do tapete, que é a ideia do “colapso” da onda quântica, a chamada “interpretação de Copenhaga”, dominante na comunidade da Física.

Sim, a Ciência também tem destas coisas, a teoria quântica fundamental, tal como definida por Heisenberg, Bohr, Born e Dirac e outros há quase 100 anos, está ainda, no momento presente, sujeita a interpretações diferentes, algumas sem justificação rigorosa, ou até imputáveis de inconsistência (nas palavras de Penrose).

Na física quântica, a evolução de um sistema é descrita por um conceito matemático chamado (função de) onda quântica, que apenas indica qual a probabilidade de todos e cada um dos estados possíveis futuros do dito sistema, e evolui de uma forma suave descrita pela equação de Schrödinger. Não é possivel prever de forma completamente definida a evolução futura de um sistema em termos de observações particulares: o famoso princípio da incerteza de Heisenberg. A física quântica é mesmo assim, até aqui tudo bem.

O problema é que, em laboratório, não se observa essa onda quântica que fala de todas as observações possíveis, mas observa-se sim um resultado particular de entre os possíveis, escolhido (pela Natureza?) de forma aleatória. Mas porquê? A teoria fundamental não explica tal facto de forma intrínseca.

Foi então preciso interpretar e postular, tendo surgido, depois de muitos debates nas décadas de 1920-30, a interpretação de Copenhaga. Copenhaga postula que se observa o dito resultado único devido a um colapso da onda quântica, o qual só sucede se houver uma interação entre o exterior e o sistema quântico em observação, que interrompe, de forma abrupta, a evolução produzida pela equação de Schrödinger.

Esta interpretação é, desde logo, problemática, pois vem explicar o mundo com uma amálgama de duas teorias físicas diferentes, uma para o mundo quântico e outra para o mundo “exterior”, o mundo “clássico” e macroscópico, o que não parece de todo razoável, o universo é só um. Mas, o problema mais difícil de aceitar é que o dito colapso se supõe instantâneo em toda a onda quântica, independentemente da distância a que se encontrem os objetos por si descritos. É assim este o postulado que tanto chocou Einstein, justamente, e que o levou a publicar o famoso artigo com Podelski e Rosen, usando como exemplo limite um paradoxo envolvendo duas partículas entrelaçadas.

O colapso da onda quântica não tem até hoje explicação devidamente fundamentada, é incoerente com a evolução global da onda quântica prevista pela teoria base, e vem motivar as mais bizarras especulações, como, por exemplo, que tal colapso possa ser causado pela intervenção de um observador consciente.

Existem várias alternativas à interpretação de Copenhaga, em particular a interpretação dos vários mundos, iniciada por Everett, com fortes defensores como Bryce DeWitt, Lev Vaidman, Sean Carrol e David Deutsch, entre muitos outros.

Na interpretação dos vários mundos não existe nenhum colapso e as várias alternativas previstas pela onda quântica coexistem na realidade, contendo o nosso universo, de certa forma, vários mundos paralelos. Para além de ser completamente coerente, ao contrário de Copenhaga, a interpretação dos vários mundos não sofre do paradoxo dos efeitos à distância, não viola qualquer princípio de localidade, é globalmente determinista, e explica de forma intuitiva os mistérios da física quântica. No entanto, os seus vários mundos não são necessariamente estatisticamente independentes, condição que é um pressuposto subjacente às extraordinárias experiências realizadas por Aspect, Clauser e Zeilinger.

David Deutsch, premiado com o 2023 Breakthrough Prize in Fundamental Physics pelas suas profundas contribuições para a computação quântica, avançou recentemente algumas razões pelas quais considera que a interpretação dos vários mundos não é ainda a consensual. Copenhaga “funciona” na prática laboratorial, e é ainda a tradicionalmente ensinada nas universidades, de forma conservadora, podendo não encorajar as novas gerações a mudar a sua visão, nem a abraçar o desconhecido, enfatizando o dictumshut up and calculate!” (cala-te e calcula!) atribuído a vários físicos famosos. Parece relevante acrescentar que os mundos paralelos da interpretação dos vários mundos nada têm a ver com os universos paralelos da ficção científica. De facto, parecem ser uma realidade muito concreta, e já colocados ao serviço tecnológico da computação quântica.

O impressionante aumento de poder prometido pela computação quântica consiste exatamente em explorar a capacidade de computação tornada possível colocando os vários mundos de Everett a trabalhar em paralelo, a toda a força. Não sabemos ainda até que ponto a computação quântica vai honrar as suas promessas. Mas não haja dúvida que se baseia na existência real dos vários mundos, enquanto ramos sobrepostos e alternativos da onda quântica. Em geral, a teoria da informação quântica, e as ideias de John Wheeler popularizadas pelo seu sloganIt from bit”, defendendo que o último substrato compreensível da realidade poderá ser a informação pura, ganham cada vez mais presença.

Assim, a demanda e competição pelo Conhecimento progride, de forma irrequieta e entusiasmante, e, quem sabe, afinal Einstein, autor do trabalho que em 1905 iniciou os estudo dos quanta, ainda poderá ter razão.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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