A perspetiva de um liberal sobre o Mundial – uma resposta a Carmo Afonso

Um Campeonato do Mundo de futebol não deve ser, como vai ser, a montra de um Estado falhado que apenas organiza este evento porque, como se diz na gíria, “money talks”.

2022 é ano de Campeonato do Mundo de futebol. Uma competição que reúne os melhores jogadores do mundo a defender as cores dos seus países, num ambiente de festa entre os diversos adeptos dos diversos pontos do globo e que, em Portugal, se torna um excelente pretexto para juntar os amigos numa esplanada, em plena tarde de verão, para apoiar a nossa seleção.

Contudo, este ano é diferente: é novembro, está a chover, anoitece antes das 18 horas, já há casas com a árvore de Natal pronta. Não é o clima habitual de um Campeonato do Mundo. E porquê? Porque a FIFA e os seus responsáveis cederam ao já conhecido sportswashing: uma manobra de branqueamento de regimes falhados, onde não se respeitam os direitos humanos, em que, através do pagamento de avultadas quantias monetárias, se promove a organização de eventos desportivos; em suma, usa-se o desporto para esconder a realidade macabra de um regime que está muito longe de ser democrático.

Se, para qualquer fã de futebol, este mundial no Qatar não faz sentido algum, para qualquer pessoa com um ímpeto minimamente democrático ainda menos sentido faz. E se afunilarmos ainda mais, ou seja, se estiver em causa um liberal, sim, Dra. Carmo Afonso, o Mundial de 2022 é algo de estapafúrdio e completamente contranatura. E, para tal, basta olharmos para aquilo que um liberal defende.

Em primeiro lugar, a meritocracia. Um liberal defende que um indivíduo ou uma entidade deve ser valorizada pelo seu mérito. Ora, quando a FIFA escolheu, em 2010, o Qatar como sede do Campeonato do Mundo de 2022, o Qatar não tinha uma legislação condizente com a de um regime democrático, não tinha infraestruturas ou projetos destas fora do papel para tal organização, não tinha um futebol desenvolvido ao ponto de “merecer” a organização de uma competição desta envergadura – relevante, uma vez que o organizador tem vaga garantida na fase final, sem necessidade de disputar o apuramento. O Qatar apenas tinha dinheiro capaz de comprar os votos dos responsáveis do órgão máximo que tutela o futebol. Ora, para um liberal, a corrupção é o completo antónimo do mérito, mérito que deve, em qualquer circunstância, prevalecer.

Em segundo lugar, o respeito pelos direitos humanos. Muitas vezes ouve-se a máxima de que o futebol e a política não se misturam. Porém, quando se fala de direitos humanos, não estamos a falar simplesmente de política, estamos a falar de humanidade, de respeito pelos indivíduos enquanto seres individuais. E, quanto a faltas de respeito, cabe-nos analisar por dois prismas.

Num primeiro ponto, o facto de, de acordo com investigações e relatórios de ONGs, terem morrido cerca de 5000 pessoas na construção dos estádios que receberão os 64 jogos da competição. O Estado qatari não foi capaz de assumir as causas de tais mortes, muito menos assumir a existência, ou não, de tais mortes, cuja causa foi o trabalho sobre-humano a que estes trabalhadores, na sua grande maioria migrantes, foram expostos, em condições extremas – porque a competição não se pôde realizar no verão por conta das temperaturas de 50ºC, mas os trabalhadores puderam trabalhar por baixo dessas mesmas temperaturas. Um Estado que não assume que morreram pessoas às suas mãos é um estado falhado, que um liberal, por princípio, abomina.

Num segundo ponto, o respeito pelos direitos das mulheres e os direitos da comunidade LGBT+. Um liberal defende que todos, sem exceção, devem ser livres enquanto indivíduos, devendo o Estado garantir as condições para que tal desígnio se cumpra. A partir do momento em que um país como o Qatar pune penalmente a homossexualidade, em alguns casos com a pena de morte, qualquer liberal, automaticamente, reprova categoricamente esse mesmo país, sem nenhuma contemplação. O desrespeito a estes direitos são símbolos de uma sociedade antiquada, pouco evoluída e na qual um liberal nunca gostaria de estar integrado e com que um evento da magnitude do Campeonato do Mundo de futebol nunca devia ter de compactuar. Para não falar do facto de que, apesar de estar em causa uma organização à escala global, os responsáveis qataris continuam a impor os seus dogmas, dogmas esses que estão profundamente errados.

Concluindo, e para responder à Dra. Carmo Afonso, um liberal, por definição, é contra este Mundial que já se apelida, e bem, de “Mundial da vergonha”. O desporto e as suas competições internacionais são um momento de harmonia entre povos, de convívio entre os mais diversos adeptos e, acima de tudo, de os seus protagonistas – os desportistas – serem o centro das atenções, através de glórias e conquistas que os deixarão nas páginas douradas dos seus países. Não deve ser, como vai suceder, a montra de um Estado falhado que apenas organiza tal evento porque, como se diz na gíria, “money talks”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

Sugerir correcção
Ler 5 comentários