Os lucros excessivos da distribuição alimentar

A iniciativa privada deve ser protegida, e não intervencionada, mas,numa altura de emergência social, todos devem contribuir, especialmente quando obtêm lucros excessivos em bens essenciais.

Pelas palavras de António Costa, ficamos a saber que os lucros excessivos das empresas de distribuição alimentar irão também ser taxados, tal como irá acontecer com os lucros excessivos do setor energético. A ser verdade, trata-se de uma excelente iniciativa, não tanto pelo valor em termos de arrecadação de impostos (trata-se de umas dezenas de milhões de euros), mas pelo sinal que é transmitido para a sociedade, nestes tempos de tantas dificuldades.

Pelos últimos resultados conhecidos, o setor da distribuição alimentar está a incrementar os seus lucros em dois dígitos, chegando mesmo aumentos de 90%. Ora é exatamente aqui que algo não bate certo.

Perante a possibilidade de os lucros excessivos virem a ser taxados, veio logo a terreno a Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, fazer o choradinho do costume - “as margens estão completamente esmagadas”, “o retalho alimentar tem vindo a fazer um trabalho absolutamente notável, procurando não transmitir o aumento dos custos dos fatores de produção para o valor final”. Portanto, podemos facilmente concluir que as margens não são esmagadas, são completamente esmagadas e que o trabalho de não passar aumentos dos fatores de produção para o valor final, não é apenas notável, é absolutamente notável. Os portugueses que neste momento estão cada vez mais a recorrer ao Banco Alimentar, à Cáritas e a outras instituições porque estão a passar necessidades alimentares parece que devem ficar agradecidos a este absolutamente notável trabalho que o setor de distribuição alimentar está a fazer.

Em minha opinião são palavras vagas, sem qualquer adesão à realidade. Se o que diz a Associação é verdade, como se explica a grandeza no aumento dos lucros setoriais? Todos somos perfeitamente livres de pensar que pode existir aqui um aproveitamento do contexto da inflação para aumentos superiores no valor final. Tal como a covid-19 era justificação para tudo, pode estar a acontecer o mesmo com a inflação. Se assim for, depois de pagarem os impostos sobre esses lucros, ainda ficarão muitos lucros excessivos para serem distribuídos pelos acionistas, ou o que quiserem fazer deles.

À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta e aqui parece não estar a existir um mínimo de transparência.

A iniciativa privada deve ser protegida, e não intervencionada, mas numa altura de emergência social, todos devem ser chamados a contribuir, muito em especial quando estão a obter lucros excessivos em produtos de primeira necessidade. Ou será que esta Associação e os seus associados ainda não perceberam o contexto em que se encontram muitas famílias? Não foram estas empresas que colocaram alarmes em latas de atum, para evitar os roubos dos que passam fome? Ou será que foi para evitar os roubos de alguma máfia de Leste, que se especializou nos roubos de atum e que recentemente se instalou em Portugal?

A história está mal contada, ou pelo menos faltam informações. Falta transparência. Em situações normais, com margens completamente esmagadas, e que assim continuem, e com cuidados absolutamente notáveis em não transmitir para o preço final o aumento dos custos dos fatores produtivos, os lucros não poderiam subir desta forma. Se os aumentos de lucros se devem a outros fatores exógenos que sejam perfeitamente aceitáveis, devem-se transmitir publicamente essas informações, principalmente depois de os representantes do setor se pronunciarem sobre este assunto da forma como o fizeram e das palavras que utilizaram.

A maioria dos portugueses e aqueles que não têm voz para serem ouvidos e que esperam ansiosamente que lhes seja oferecido um pequeno cabaz de alimentos que vale uns 10 ou 20 euros não compreendem estes lucros e muito menos estas palavras, numa altura destas. Se existe uma explicação plausível, a Associação setorial devia tê-la dado, e não aplicar palavras como margens completamente esmagadas e esforços notáveis. Esforços notáveis para não serem completamente esmagados pela vida fazem aqueles que diariamente lutam de uma forma honesta para sobreviver e dar de comer aos seus filhos. Não são estas empresas que fazem esses esforços.

Cuidado com as palavras, principalmente quando a realidade parece apontar no sentido inverso. Transparência, explicar, e falar verdade é o que se pede, quando se sabe que mais de metade de metade dos portugueses está a gastar menos em comida.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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