Os Artistas Unidos de regresso a Arne Lygre

Proximidade, que até 3 de Dezembro fica no Teatro da Politécnica, em Lisboa, é um texto poético, cruzado por personagens que não saem da névoa. António Simão assina a encenação.

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JORGE GONÇALVES

Ela tem uma mulher estranha sentada na sua cama. Tinha-a visto na rua, com um ar perdido. Primeiro, Ela seguiu em frente, na direcção de casa; mas depois voltou atrás, quis certificar-se de que a estranha estava bem e ficou a saber que aquela mulher tinha simplesmente pegado no casaco e numa mala e fugido “de nada, de ninguém, de casa”. Em passos lentos, “para sentir que tinha decidido bem”.

Ela (Rita Durão) e Uma Estranha (Isabel Muñoz Cardoso) são duas desconhecidas a tactear o mundo uma da outra. Esta última faz parte de um grupo de personagens, poucas, namorados e amigos (Pedro Carraca e Simon Frankel), que vão surgindo diante de Ela como se desfilassem num sonho. Um possível sonho desencadeado por uma situação muito concreta: a morte da mãe há alguns dias, ou talvez mesmo na véspera.

É assim Proximidade, peça do dramaturgo norueguês Arne Lygre que ocupará o Teatro da Politécnica, em Lisboa, até 3 de Dezembro. Foi um texto de que o encenador, António Simão, gostou de imediato, passando-a para a gaveta que os Artistas Unidos consagram aos hipotéticos espectáculos futuros. E foi dessa gaveta que saiu, na hora de pôr de pé a primeira temporada da companhia sem Jorge Silva Melo ao leme.

“Esta peça tem um tempo em que é tudo muito dilatado”, descreve António Simão ao PÚBLICO. “É feita de elementos poéticos, embora as palavras sejam quase totalmente banais. Mas gosto da sensação de espaço que transmite, algo que está no ambiente, no som e sobretudo na palavra. É um texto muito para ser ouvido.” E é às palavras que os actores têm de se agarrar, tal a escassez de acções físicas que o texto do autor norueguês propõe.

Num tom poético e circular que lembra também o do seu conterrâneo Jon Fosse – autor a que os Artistas Unidos voltarão igualmente em breve –, Arne Lygre vai criando um torvelinho de linguagem. As personagens rememoram com frequência aquilo que já viveram, como se estivessem suspensas num qualquer limbo temporal de pouca ou nenhuma concretude. Ela e Uma Estranha começam por falar do seu encontro lembrando aquilo que disseram e fizeram. Depois, quando Um Amigo aparece, é ainda (e sempre) nas palavras e nas descrições que tudo existe. Ela: “És um dos meus melhores amigos. Não nos conhecemos há muito tempo, mas somos próximos. Há algo de especial connosco. Com a nossa relação. Dizes isso frequentemente. Fico contente por sermos amigos, dizes tu.”

Este tom, num “meio-termo entre o romance e o drama” a que Simão chama o “efeito Lygre”, faz com que as personagens estejam em palco mas vendo-se de fora, falando sobre si e sobre as outras, referindo-se àquilo que fizeram ou farão, mas como que ausentadas do presente.

O encenador gosta deste tempo elástico, pouco preocupado com a linearidade, em que nunca é claro se são dois (ou apenas um) os namorados de Ela, se aquilo que ouvimos em palco reconstitui em alguma medida a realidade das personagens ou simplesmente fantasia acerca do seu mundo. “Este tom lembra-me um pouco o space rock, o Steve Reich, coisas dos anos 90 ou músicos de hoje como o Ben Frost, que criam um ambiente de espaço, mesmo numa sala pequenina”, partilha o encenador.

Ela diz logo de início que não consegue viver sozinha. Mas rodeia-se destas personagens que não se demoram na sua vida e às quais pede, inclusivamente, que a esqueçam. Há uma estranheza e uma história de família que remetem o encenador para a Sonata de Outono de Ingmar Bergman, filme que aconselhou aos actores. “Está lá toda a parte existencialista, destes problemas de quem não tem de pensar em pagar água e luz”, descreve António Simão numa gargalhada.

Presa a uma certa circularidade do discurso, Proximidade nunca retira por completo as personagens da névoa em que as lança de início, como se apenas acrescentasse camadas à inacessibilidade destas figuras que nunca se inscrevem realmente em cena. Porque, apesar de próximas, elas nunca se deixam agarrar.

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