Os javalis invadiram os campos de golfe de Vilamoura

Animais vindos das montanhas trocam a bolota da serra pela minhoca que encontram nos campos de golfe. Em Vilamoura, começa esta quinta-feira o importante torneio Portugal Masters.

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A partir da altura em que as visitas se tornaram muito frequentes, a presença dos javalis começou a tornar-se indesejada Miguel Manso

Os javalis desceram da serra, instalaram-se junto ao mar e fazem incursões sobre os campos de golfe de Vilamoura que recebem a partir de hoje e até ao próximo dia 30 de Novembro o torneio Portugal Masters. A ribeira de Quarteira, ainda seca, é utilizada como corredor de acesso às zonas dos relvados e jardins. De focinho levantado, os animais procuram as minhocas no campo verde e “chafurdam” por todo o lado. Os estragos são avultados, reclama quem vive na região.

No início, despertaram curiosidade. A partir da altura em que estas visitas se tornaram muito frequentes, a presença dos animais começou a tornar-se indesejada. De norte a sul do país há quem fale de uma “praga” que aumenta do dia para a noite. O fenómeno não é novo. A questão reside em saber até que ponto estes animais estão a perturbar o ecossistema.

O Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), reconhecendo a proliferação da espécie, passou a autorizar o abate de javalis para repor o equilíbrio das espécies. Para travar este aumento desta população, a caça ao javali foi autorizada inicialmente até 31 de Maio, através de esperas diurnas ou nocturnas, com ou sem recurso a luz artificial, dentro ou fora do período de Lua Cheia.

Mais recentemente, o ICNF alargou o prazo, entre 1 de Julho e 30 de Setembro, e autorizou a realização de batidas com cães em culturas agrícolas afectadas pelos javalis. Uma das condições para a emissão de credências aos caçadores reside na apresentação de provas da destruição nas culturas. “Aqui, nos golfes, o abate está autorizado todo o ano”, diz o director dos campos de golfe dos hotéis D. Pedro, Rui Grave, explicando que, alturas houve, em que as investidas chegaram a ser quase diárias. “Neste momento, a situação está controlada”, avalia.

O empreendimento turístico de Vilamoura prepara-se para receber, entre esta quinta-feira e 30 Outubro, o Portugal Masters - o mais importante torneio de golfe em Portugal. A prova disputa-se no campo Victoria, um dos sítios fustigados pelos suínos. Porém, é pouco provável que haja um encontro acidental com os jogadores. Os animais gostam de se passear à noite, e as provas decorrem durante o dia.

Ainda assim, os animais parece que se habituaram ao luxo dos resorts e, tal como os turistas que há algumas décadas chegavam ao sul de Portugal com pouco dinheiro, estes “turistas de pata descalça” tornaram-se “residentes” permanentes. E começam mesmo a aventurar-se nos relvados durante o dia. “Ainda ontem [na semana passada], de manhãzinha, vi um a andar pelo golfe [Victoria]”, conta Rui Grave.

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Campos de golfe do empreendimento Dom Pedro, o Victoria Golf Course, em Vilamoura Rui Gaudêncio

Tudo começou na pandemia

Mas os javalis não estão sozinhos no reino da vida animal em espaço urbano. “Temos várias famílias de lontras nos lagos - pais, filhos, avós e tios”, revela. O lado menos simpático, confidencia, é que obrigaram a reforçar os serviços de higiene e limpeza. A dieta alimentar destes mamíferos, como podia deixar de ser, inclui lagostins como prato principal. Já os javalis, diz, preferem minhocas, larvas e raízes.

Rui Grave trabalha na manutenção dos campos de golfe há 20 anos, conta que jamais se tinha deparado com um cenário de vida selvagem, no meio de uma zona turística, como agora tem vindo a acontecer. “Tudo começou na Primavera de 2020, em plena pandemia”, quando a covid-19 obrigou toda a gente a ficar em casa.

Os primeiros casos, relata, foram detectados pelos seguranças, durante a noite quando faziam as rondas. Quando deixaram de ser “turistas” ocasionais, passando à situação de “residentes permanentes”, o caso foi participado ao ICNF/Algarve, que reconheceu a existência de uma “densidade populacional” foram do comum. Nessa altura, a Associação de Caçadores de Loulé foi autorizada a entrar em campo, para que a espécie não se multiplicasse mais rápido do que os cogumelos, nos anos chuvosos.

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Recentemente, o ICNF alargou o prazo de autorização da caça e abate de javalis até 30 de Setembro Enric Vives-Rubio

Durante o Verão, quando a seca se fazia sentir de forma agressiva, os porcos deslocaram-se da montanha para o litoral. “Faça férias cá dentro”, anunciavam as campanhas do turismo interno. Em Vilamoura, os javalis ainda não entram nas esplanadas dos cafés e restaurantes, mas já começam a habituar-se às pessoas: “Não se sentem incomodados com a presença dos golfistas”, refere Rui Grave, salientando que só não são bem-vindos por causa dos estragos que fazem nos relvados.

Em Lagos, André Coelho, caçador, relata uma situação semelhante. “No ano passado, fui abater javalis no campo da Boavista. A operação, recorda, durou mais de um mês. “A densidade populacional exigiu uma correcção cinegética”. Durante a noite, descreve, os animais movimentam-se com um certo à vontade, como se não existisse fronteira entre o campo e a cidade. Depois, o sucesso da caçada, “depende da pontaria, ser ou não, certeira”.

As amêndoas e o aumento das famílias de javalis

Na serra do Caldeirão, Sérgio Guerreiro segue a rotina diária: “Vou dar milho aos porcos e verificar se tudo está bem na zona de caça associativa”. A área que vigia situa-se entre as freguesias de Querença e Salir. “Perdizes cada vez há menos, javalis é coisa não falta”, enfatiza.

A carne de porco selvagem, até há meia dúzia de anos, refere, tinha muita procura. “Agora, - e falo por mim, que sou caçador - estou farto”. Nos cafés das redondezas dominam as conversas sobre os estragos dos animais selvagens. “Quando entram na horta, não há nada que escape”, admite Sérgio, caçador e agricultor: “A serra ficou despovoada, não admira que os porcos se sintam os donos disto tudo”, comenta.

O jipe desce quase a pique a montanha da Umbria do Gago, a meio do percurso pára o todo-o-terreno. “Hoje, vou deixar um petisco especial para os porcos: amêndoas”. O alimento não fica deixado à vista de qualquer forasteiro. “Se tudo for muito fácil, o bicho desconfia da oferta”, adverte, passando a explicar a estratégica: “vou esconder as amêndoas debaixo de pedras, para criar a ilusão de que estão a fazer uma descoberta, e assim ficam distraídos”.

Mas, reconhece, nem todos têm o mesmo comportamento. “Há outros indivíduos que preferem mesa posta, no mesmo sítio, com toda a cortesia, como se estivessem num hotel de cinco estrelas” ironiza. Depois de se habituarem ao acesso ao alimento fácil, tornam-se presas fáceis. Porquê amêndoas para o almoço? “Eles adoram frutos secos, dizem até que, nestes animais, tem um efeito afrodisíaco”, especula o caçador. É bastante improvável que seja um efeito inesperado das amêndoas, mas Sérgio Guerreiro assinala que nota um crescimento demográfico e confirma que há cada vez há mais fêmeas prenhas. E acrescenta: “os machos andam doidinhos por elas”.

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Os javalis encontram-se em várias regiões de Portugal Patricia Martins

O veterinário António Madeira atribui o crescimento demográfico ao desequilíbrio ecológico. “O abandono do meio rural abriu portas ao javali, um predador de topo, para ficar à vontade e com muita comida à disposição”. Sobre o mito das propriedades afrodisíacas das amêndoas, não hesita em desmentir: “Nessa é que eu não acredito”. Já quanto à deslocação dos animais da serra para o mar, admite que “se lhes faltar o alimento até são capazes de ir aos caixotes do lixo nas cidades”.

A fruta e outros danos

Nas aldeias, não faltam relatos de episódios do animal a aproximar-se das habitações. “Entraram no meu quintal e comeram todos os tomates”, diz Jorge Campos, em Benafim (Loulé). A cena passou-se ao princípio da noite, num altura em que as pessoas já tinham recolhido às suas casas.

No dia seguinte, foi a surpresa. A fruta tinha desaparecido e, pior ainda, “espatifaram todo o sistema de rega”. A vizinha, diz, queixou-se de uma situação semelhante “Veio-me perguntar o que podia fazer contra os javalis - o que respondi foi que nada haveria a fazer”. Instalou-se o sentimento de impotência na aldeia.

Sérgio Guerreiro admite que a chuva que caiu nos últimos dias pode “acalmar” o avanço dos javalis sobre as zonas habitacionais. “A terra húmida é a praia deles”, diz, descrevendo casos que presenciou: “Chafurdam por todo o lado, e roçam o lombo enlameado pelos sobreiros”.

Não são conhecidos casos de ataque a pessoas, mas à cautela, aconselha: “Na altura da criação, as porcas podem agredir se sentirem algum risco para os filhos”. A média da reprodução, até há pouco mais de meia dúzia de anos, andava nos dois a quatro filhotes, “agora vê-se porcas com dez bácoros atrás”, enfatiza. Não é por acaso que o javali integra a lista das 100 espécies invasoras no mundo, elaborada pela União Internacional para a Conservação da Natureza.

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