O velhote de Santiago do Chile

O velhote não tinha qualquer curiosidade para saber nada da vida destes campeões do mundo das viagens, e que traziam o mundo todo nas suas memórias.

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Manifestação no Chile em memória das vítimas do regime Pinochet Reuters/IVAN ALVARADO

Atenção que esta estória pode não ir a lado nenhum. Em 2018 quando estava a viajar pela América do Sul com a minha ex-namorada, acabei por passar muito tempo no mesmo hostel em Santiago do Chile. E houve uma pessoa com quem eu cruzei caminho, não posso dizer que tenha conhecido, mas que me marcou até hoje.

Santiago do Chile é uma cidade incrível por mil um e motivos... O embalo de Pablo Neruda é interessante, mas de longe um dos pontos altos de todas as viagens da minha vida, foi o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, onde se lê na entrada a letras magnânimas No Mas, que retrata os tempos da ditadura de Pinochet, e onde eu tive arrepios pela espinha ao ouvir Salvador Allende, quando sabia que ia morrer e faz oum discurso espontâneo, em directo, o mais bonito da história para a rádio Magalhães, onde deixa até ao último suspiro a luta por um Chile melhor, por um mundo melhor... E, depois dessas palavras, morre por isso.

Mas a razão pela qual eu fiquei em Santiago mesmo muito tempo, é porque fomos assaltados em Valparaíso (outra cidade incrível), ao ponto que fiquei apenas com a roupa que tinha no corpo, e até o passaporte me levaram, razão pela qual o dito hostel foi a nossa casa, até eu ter um novo passaporte vindo da embaixada.

Esse hostel típico de backpackers, era bastante grande, tinha zonas comuns, terraço interior, várias camaratas com beliches, e vários quartos duplos. O protagonista desta história é um senhor, a quem eu carinhosamente vou chamar “velhote”. Não podia ter menos do que 80 anos, mas tinha um aspecto hirto, confiante, magro, bem cuidado e com energia de sobra.

Acontece que o velhote vivia numa das camaratas que tinha oito camas. Vivia lá. Era a “casa” dele. No meio de viajantes de todo o mundo, esta estória chama a atenção. Os mochileiros que deixam em Santiago três ou quatro dias da sua aventura pela Sudamérica, pouco ou nada sabem sobre este homem, a não ser que vive ali. Eu e a minha ex chegamos mesmo a dormir na dita camarata, que era mista, duas das noites, por falta de quarto duplo livre.

O velhote deita-se cedo e acorda cedo, o que num hostel de aventureiros causa contratempos, e o resto do dia nunca ninguém o via. No Chile, o vinho é bom e barato... Gente a chegar com os copos, às tantas da manhã, é o pão nosso de cada dia. Mas o velhote não parecia importar-se muito.

Sinceramente, também pouco ouvi a sua voz. Não sei se posso dizer que era antipático, mas simpático não era. O turista é por definição um ser estúpido e ignorante que nunca sabe nada sobre nada, e o velhote, às vezes, a esforço, lá dizia onde se ligava a torradeira, ou que mais café para o pequeno-almoço estava a chegar.

Para mim, o interessante desta estória é que, a viajar, normalmente as pessoas acham-se muito interessantes. Viajar duas ou três semanas é para “tótós”. Ali, desmultiplicam-se em meses e meses as estórias dos viajantes. A nossa “não era má”, durante dois meses do Ushuaia a Lima (Argentina, Chile, Bolívia e Peru), e tinha começado com a apresentação do meu livro no Rio de Janeiro, mas ali, à conversa, à volta do vinho chileno, há sempre estórias melhores, alguns já vinham de Cartagena das Índias, outros começaram no Alasca. Há ali gente que eu acho que já nem sabe de que terra é, ou para que terra vai...

Estórias interessantes, sem dúvida, gente muito interessante, sem dúvida, uma abertura de mundo e de partilha absolutamente incrível, sem dúvida... E o velhote, o que é que ele queria saber disto? Nada! Absolutamente nada! Nem uma pergunta de cortesia do tipo “de onde é que és?”.

Os super-viajantes morriam de curiosidade para saber a estória de vida do velhote, que era um pobre duma grande cidade que arranjou ali uma forma barata de não ser mais um sem-abrigo para a estatística. Mas, o velhote não tinha qualquer curiosidade para saber nada da vida destes campeões do mundo das viagens, e que traziam o mundo todo nas suas memórias.

No mesmo lugar, a respirar o mesmo ar durante a noite, parece que tudo depende da nossa perspectiva de vida.

Até hoje me pergunto porque é que gente que se acha tão interessante e tão vivida, queria tanto saber da vida do velhote, e o velhote tão simples nada queria saber da vida de gente potencialmente interessante?

Porque será?

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