“Acabou o Aniki [Bobó].” Espaço mítico do Porto vai ser casa de fados

Foi ponto de encontro de muita gente nos anos 80 e 90. Após o fecho das portas em 2005, uma promessa de reabertura, com apoio camarário, surgiu. Mas nunca se concretizou. Em Julho, autarquia pôs edifício em hasta pública.

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Espaço aberto em 1985 foi muito popular nos anos 80 e 90, quando a Ribeira era o centro da diversão nocturna no Porto Nelson Garrido

Quando António Guimarães retirou da parede de pedra a conhecida placa do “café concerto” Aniki Bobó, esta quarta-feira, não pode evitar o assalto de uma memória. Naquele mesmo sítio, à porta do número 36 da Rua da Fonte Taurina, Rui Moreira havia-lhe prometido, em 2016, não deixar que o mítico espaço do Porto tivesse um fim desviado de um projecto cultural, do qual o antigo dono, mais conhecido por Becas, fizesse parte. Era uma conversa informal, no fim de uma “festa muito bonita” que reabriu (e encheu) por algumas horas o bar da Ribeira inaugurado em 1985 e fechado desde 2005. “Ontem quando fui tirar a placa lembrei-me disto... Acabou o Aniki.”

Em Julho, a Câmara do Porto, proprietária do edifício, promoveu uma hasta pública para o arrendamento do espaço, com área bruta de 130 ​metros quadrados e logradouro com 38 metros quadrados, para “comércio e/ou serviços”. O valor base de licitação era de 1150 euros e seria entregue, por dez anos, a quem oferecesse mais. A empresa Sombra Vadia, de Vila Nova de Gaia, saiu vencedora, oferecendo 3100 euros mensais pelo espaço, revela a autarquia. No lugar do Aniki Bobó vai abrir, em breve, um restaurante, que funcionará como casa de fados.

O fim poderia ter sido outro. António Guimarães reforça não ser dado a saudosismos, mas não esconde alguma tristeza por este fim “definitivo”. “Houve várias hipóteses de o Aniki Bobó ser outra coisa.” A mais recente aconteceu em 2017. A autarquia burilava a criação de uma Fonoteca Municipal e ponderava usar o Aniki para acolher esse acervo. O plano para os vinis acabaria, no entanto, por encontrar casa em Campanhã, interrompendo a nova vida da Rua da Fonte Taurina.

Foi a produtora Lovers & Lollypops quem recuperou a esperança. Em busca de um espaço para continuar o trabalho com já 11 anos, na altura, pensaram em fazer daquele lugar casa, não só deles mas também de projectos musicais vanguardistas e experimentais, nacionais e internacionais. A bênção da Câmara do Porto foi dada. Mas o projecto nunca passou disso mesmo.

A Câmara do Porto explica as razões: “Dado o uso residencial na parte superior do edifício, não era acomodável atendendo às condições de protecção relativamente ao ruído. A única hipótese que havia, muito onerosa, seria construir quase que uma caixa de insonorização, que ao reduzir de tal forma o espaço útil disponível tornaria o projecto inviável.”

A lacuna de um projecto dedicado ao culto da música nova, experimental e de diferentes estéticas, diagnóstico feito pela própria autarquia, terá sido colmatada pela Fonoteca, responde agora o gabinete de comunicação quando questionado pelo PÚBLICO.

Já mais recentemente, conta António Guimarães sem dar pormenores, houve quem tentasse fazer do número 36 um espaço artístico, capaz de receber residências e outros eventos. Sem sucesso.

Ninguém vai à Ribeira

“Foi pena. Mas o mundo é feito de mudanças. Levo a placa para minha casa”, comenta Becas, também proprietário do Passos Manuel. Não é apenas uma placa. A escultura, de Manuel Rosa, editor da Assírio & Alvim, tem um simbolismo: “Representa uma coisa que a Ribeira deixou de ser”, afirma. “Uma espécie de vanguarda cultural e nocturna. Não era só o Aniki, era o Meia Cave, o Mercedes. Era um ponto de encontro nos anos 80 e 90. O sair daquela placa é definitivamente o fim de uma Ribeira que agora é outra coisa.”

Uma outra coisa de que António Guimarães não gosta. E que, acima de tudo, não serve a cidade: “É um Ribeira da era dos turistas, não é para aquela geração [que frequentou o Aniki] nem para as novas. Ninguém vai à Ribeira.”

Artistas, designers, músicos e outras figuras da cultura portuense, mas também lisboeta e galega, eram presença habitual no Aniki, lugar com nome “roubado” à primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira, com palco sobre o bar, um sofá de baloiço no tecto, uma gata preta chamada Mosko (de inspiração na vodka Moskovskaya) e um pátio onde aconteciam performances incomuns. Por ali, houve concertos de Anamar, Rádio Macau, Pedro Abrunhosa & os Bandemónios, Madredeus, Repórter Estrábico, Sétima Legião, Ena Pá 2000, Mão Morta, Clã.

E muito espaço para ser mais do que um café-concerto “Agora toda a gente vai a um bar e beber um gin. Naquele tempo era uma aventura. Popularizou aquela coisa de sair, mas para fazer coisas fixes, não era só beber um copo. Era um sítio de grande conspiração, onde aconteciam coisas e se organizavam coisas. Eram outros tempos.”

A forma como o Aniki “marcou uma ou duas gerações de uma maneira muito forte” foi, de certa forma, demonstrada esta quarta-feira, com as reacções à publicação de Becas no Facebook. Com a sua fotografia com a placa do “café concerto”, partida desde a abertura, e a legenda “Finito”, vieram mensagens de tristeza, saudades, memórias, agradecimentos. E também ofertas por aquela escultura: “Ofereceram-me 10 mil euros. Mas não vendo.”

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