Os invisíveis entre nós

É preciso reconhecer quem são “eles” em nome de prosseguir uma ideia verdadeira de “nós”, para que as leis e as sentenças sejam feitas por nós e sirvam para nós — a comunidade residente em Portugal, não só a comunidade portuguesa.

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Paulo Pimenta

O intuito deste texto é ver aqueles que existem, mas não em todos os meios.

Em quase quatro anos a tirar a licenciatura em Direito, nunca tive nenhum contacto, por exemplo, com um estudante cigano. Será que não existe vontade por parte destes jovens nesta área ou será que não há, para eles, espaço para sonhar em construir uma carreira como jurista?

Ocupar altos cargos, políticos ou não, normalmente requer a oportunidade de acesso a uma boa educação. Não chegar a uma universidade faz com que o indivíduo tenha uma restrição em relação aos inseridos na comunidade académica, das possíveis oportunidades de carreira que poderão seguir, principalmente num país com 87.733 diplomados no ensino superior.

Ter representantes de todas as camadas sociais nas mais diversas áreas revela-se importante, visto que só o oprimido é suficientemente capaz de relatar e fazer serem debatidos os graus da sua opressão. No entanto, parece não interessar ouvir determinadas minorias, pois assim suas necessidades e carências terão que ser levadas em conta e, mais ainda, terão de passar a ser vistos como membros activos da sociedade.

Uma prova do que essa falta faz é revelada no trabalho do Inclusive Courts — projecto criado em 2018 a partir de uma parceria entre o Centro de Investigação em Justiça e Governação da Universidade do Minho e o Centro em Rede de Investigação em Antropologia, que analisa sentenças de tribunais como o Supremo Tribunal Administrativo, o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional —, que mostra que expressões discriminatórias que estereotipam indivíduos de certas etnias e religiões são recorrentes nessas sentenças, sendo a comunidade cigana o maior alvo, ditos “traiçoeiros”.

Enquadrar alguém como “traiçoeiro” torna-o mais susceptível a desviar-se dos padrões éticos e morais e, consequentemente, mais fácil de ser visto como parte culpada. Parece ser uma forma de simplificar o processo para os juízes, ou seja, se o réu é cigano não haverá muito mais a apreciar.

Para além do judicial, é preciso voltar os olhos para o legislativo, expressão legítima da democracia representativa, visto que a diversidade é valor fundamental para o exercício de tal democracia.

Em Janeiro de 2022, o presidente do Partido Trabalhista Português (PTP) acusou o Partido Socialista (PS) de procurar impedir a eleição de um cidadão de etnia cigana para a Assembleia da República ao afirmar que o único voto útil é nos socialistas. O partido tinha alguns representantes ciganos e, nas palavras do presidente do PTP, aquela era a primeira vez que, efectivamente, os ciganos tinham possibilidade de entrar na Assembleia da República.

Não haver presença de uma determinada camada da sociedade em instituições de poder cria uma noção de “nós contra eles”, em que “eles” são inimigos dos bons costumes. A consequência disso é um Estado de Direito que só atende aos interesses e objectivos sociais de alguns, fazendo inexistir a tão desejada imparcialidade. É preciso reconhecer quem são “eles” em nome de prosseguir uma ideia verdadeira de “nós”, para que as leis e as sentenças sejam feitas por nós e sirvam para nós — a comunidade residente em Portugal, não só a comunidade portuguesa.

Por isso, clamo aos estudantes de Direito, como eu, que comecem a incluir esse tipo de tema sociológico nos vossos estudos, visto que o ordenamento jurídico é, antes de tudo, formado por pessoas. Pessoas que se relacionam entre si, que ocupam (ou deixam de ocupar) espaços e que, dependendo da sua origem, nascem já carregando nas suas costas uma criminalização intrínseca. Não parece ser concebível estudar de forma suficiente a ciência jurídica sem tocar de forma mais profunda a ciência que se versa sobre as relações sociais.

Sejamos nós a ajudar a tirar a “capa da invisibilidade” dos que a portam de forma indesejada, para que eles possam passar a viver entre nós e não apenas sobreviver, para que eles partilhem salas connosco, para que eles deixem de ser eles e se tornem nós.

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