Uma luz no caminho

Talvez ninguém imagine, e digo-o sem lamento, a quantidade de histórias de sofrimento e de dor que me são relatadas na primeira pessoa através de mensagens. Eu próprio não consigo sequer arriscar um número.

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“Mas que caminho seguir para o justificar?”, interroguei-me DR

Numa ocasião, um amigo disse-me o seguinte: “João, uma saca de batatas pesa 50 quilos, mas se forem dois a carregá-la, só pesa 25 para cada um.” No sábado realizei mais uma caminhada de 25 quilómetros no âmbito da iniciativa “300 quilómetros de Esperança”, que ligará o Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa ao do Porto e Coimbra.

Ora, ao contrário das jornadas anteriores, cumpridas a solo, contei com a companhia da Rosa, uma simpática apoiante da causa que até preparou (e carregou) almoço para dois. A conversa, já se sabe, faz o tempo passar mais depressa e, comprovei-o no sábado, faz também o passo mais ligeiro, mesmo quando o terreno acidentado deveria abrandá-lo.

A Rosa foi muitas vezes o batedor, carregando a parcela maior da saca de batatas. Fico-lhe eternamente agradecido, sobretudo na transição da freguesia de Casével, no município de Santarém, quando a temperatura ultrapassou os 30 graus… “Sinto uma enorme gratidão por ter permitido que fizesse parte da sua jornada”, disse-me a Rosa no final dos 25 quilómetros, fresca como uma rosa borrifada pelo orvalho da madrugada.

No dia seguinte, um querido amigo veio de Lisboa para percorrer comigo a distância entre Minde de Fátima. A nós, juntaram-se a Rosa, pois claro, e mais cinco amigos que ganhei nesta caminhada pelo país. E a saca passou a pesar apenas 6,25 kg para cada um. Quase nada para carregar ao longo de 15 quilómetros. Ao fim de três horas, pousámos a saca e banqueteámo-nos com pastéis de Fátima em forma de coração (são o dobro de um pastel de nata normal). “Ó João, tu precisas de força, come o meu”, rogou a Mónica. Não foi preciso insistir.

À hora de almoço, voltei a ficar sozinho. Dirigi-me ao hotel e, enquanto esperava que o meu quarto fosse preparado, almocei no restaurante do alojamento. Antes, porém, esclareci uma questão premente com a rececionista:

– A que horas servem o pequeno-almoço?

– A partir das oito.

– Tão tarde… – lamentei.

– Precisava de tomar o pequeno-almoço mais cedo?

– Sim, bastante mais cedo. Estava a pensar às seis…

– Nós podemos servir às seis, mas não vai ter croissants...

– Fica para as sete e não se fala mais nisso!

A senhora topou-me à distância. Pequeno-almoço de hotel sem croissants não é pequeno-almoço de hotel.

Durante a tarde, voltei a ficar sozinho. Caminhei mais sete quilómetros, diminuindo assim a quilometragem prevista para este domingo. Enquanto aguardava um táxi para me levar de regresso ao hotel, examinei as fotografias que havia tirado durante o dia. Uma imagem do nascer do sol prendeu-me a atenção mais do que qualquer outra. “Uma luz no caminho”, pensei, com a certeza de que já tinha título para esta crónica. “Mas que caminho seguir para o justificar?”, interroguei-me.

Não é habitual escrever o título antes da peça. Enquanto divagava, entrou uma mensagem no telemóvel: “O João está em Fátima, não está? Gostava de dar-lhe um abraço.” Respondi: “Olá! Dentro de um quarto de hora estou aí.” O táxi parou à porta do hotel e eu saí. A Matilde (nome fictício) abraçou-me e desatou a chorar. Durante o quarto de hora seguinte, relatou-me, com pormenor, a partida do filho “para outra dimensão, uma dimensão mais tranquila e feliz, sem sofrimento. É num lugar assim que eu agora o imagino, João, queremos sempre o melhor para os filhos, mesmo quando eles partem. Não é fácil lidar com a ausência, é uma nova realidade a que me estou a habituar, mas vamos vivendo um dia de cada vez.” Balbucei “um passo de cada vez”, procurando dar sentido ao que ando a fazer há cinco dias.

O teor descontraído destas crónicas, onde cabem quase sempre relatos de episódios engraçados e diversas graçolas, não pretende, em circunstância alguma, escamotear o lado mais cru do cancro. Talvez ninguém imagine, e digo-o sem lamento, a quantidade de histórias de sofrimento e de dor que me são relatadas na primeira pessoa através de mensagens. Eu próprio não consigo sequer arriscar um número.

As redes sociais facilitaram o contacto entre as pessoas e o intercâmbio de histórias. As pessoas só querem ser ouvidas. Querem atenção. Deitar para fora de si o que as incomoda, o que dói. Não que a dor passe completamente, mas alivia. Às vezes as pessoas não têm quem as oiça. Ou até têm, mas preferem falar com quem não as conhece tão bem ou não as conhece de todo. Foi a segunda vez na minha vida que vi a Matilde. Em sete anos, sete anos de doença do seu filho, trocámos não mais do que duas dezenas de mensagens. No domingo, a Matilde chorou e eu também. Mas senti que se foi embora mais aliviada. E eu senti que o meu caminho nunca fez tanto sentido.

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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