Podres poderes: Bolsonaro e a corrupção da palavra

Bolsonaro banalizou a palavra corrompida através da desinformação, que ora leva à desconfiança, ora à verdade cega; do incentivo a comportamentos violentos, intolerantes e autoritários da população contra riscos e fantasmas inexistentes, defendendo discursos e políticas de posse de armas; mas também da omissão e da manipulação de políticas fundamentais.

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Eleições no Brasil Reuters/PILAR OLIVARES

A primeira volta das eleições presidenciais brasileiras ocorre no dia 2 de Outubro, com candidatos que tentam evitar ou exacerbam a polarização existente na sociedade do país, num cenário de defesa e ataque ao Estado de Direito. Nesse sentido, a canção Podres poderes, de Caetano Veloso, parece servir como paralelo a alguns aspectos da retórica discursiva e comportamental do candidato à reeleição.

Caetano Veloso, um dos nomes mais sonantes da música brasileira, lançou a música Podres poderes no ano de 1984, poucos meses antes do fim da ditadura militar então vigente no Brasil (1/4/1964 a 15/3/1985). A conjuntura política e social daquele período foi alvo de metáforas críticas do engenho de Caetano, e a canção teve uma importância notável como meio de demonstração do descontentamento que perdurava na sociedade brasileira contra o regime.

Na letra, o cantor e compositor baiano perguntava, quase de maneira profética, por quanto tempo essas críticas perdurariam (“Será que esta minha estúpida retórica / Terá que soar, terá que se ouvir / Por mais zil anos?”). Ainda hoje, elas reflectem em vários quadrantes da sociedade brasileira, particularmente quanto à acção do presidente Jair Bolsonaro, assim como nas incessantes tentativas de desacreditação das instituições democráticas e abusos de poder perpetradas pelo seu Governo.

Enquanto os homens exercem / Seus podres poderes / Morrer e matar de fome / De raiva e de sede / São tantas vezes / Gestos naturais”. Na acção política bolsonarista, são “os homens” (e não “o homem”, que corresponde ao ser humano colectivo) que dominam e ditam a política a ser seguida. Em suma, são eles que detêm a palavra, cujo poder é corrompido a fim do abuso de poder e do enfraquecimento da democracia.

Bolsonaro banalizou a palavra corrompida através da desinformação, que ora leva à desconfiança, ora à verdade cega; do incentivo a comportamentos violentos, intolerantes e autoritários da população contra riscos e fantasmas inexistentes, defendendo discursos e políticas de posse de armas; mas também da omissão e da manipulação de políticas fundamentais (saúde, educação) – recorde-se a acção e posição das autoridades federais face à pandemia da covid-19 e o regresso do país ao mapa da fome mundial, com 31 milhões de cidadãos a viver em extrema pobreza – em prol de acções de interesse exclusivo do bolsonarismo. A palavra corrompida envenena, e talvez por isso “Morrer e matar de fome / De raiva e de sede” tem-se normalizado.

A sociedade brasileira tem sido alvo de abusos e absurdos nos últimos anos (não exclusivos, visto que se reflectem noutros contextos mundiais), o que tem tornado a população dormente devido ao contexto de caos constante, ao ponto de se estar a tanger a ruptura do tecido democrático. Mas é preciso ter em mente que a forma errática com que Bolsonaro prossegue não é por falta de método: como já apontava o filósofo e cientista social brasileiro Marcos Nobre, no texto e análise publicado na revista Piauí em Abril de 2019, “o caos é o método”.

Hoje a retórica que ceifa liberdade e direitos individuais apresenta-se pela imagem manipuladora de Bolsonaro e das elites que o rodeiam, bem como pelos proveitos que essas elites adquirem. A corrupção governativa sistémica das autoridades – não só através do domínio das elites sobre a restante sociedade, mas similarmente com a diminuição do debate de questões estruturantes que a assolam – prolongam essa acção de corrupção.

A palavra corrompida é a mãe da mentira e o berço da corrupção, política ou moral, e é um facto que ela tem sido utilizada para atacar grupos marginalizados (pobres, indígenas, negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, entre outros) e instituições democráticas durante as acções governativas de Bolsonaro e dos seus apoiantes. Mas, se por um lado, as palavras têm sido empregues pela força de mobilização do incitamento ao ódio e à polarização, é também através delas que se combatem agressões cometidas contra a sociedade.

O mais magnífico dos versos da canção de Caetano Veloso, apesar de transparecer um certo pessimismo num primeiro momento (“Será que nunca faremos senão confirmar / A incompetência da América católica / Que sempre precisará de ridículos tiranos?”), é o vislumbre de uma profunda esperança de que a força da palavra livre e da cultura, tão marginalizada ao longo dos últimos anos, tornar-se-á o caminho para a subversão dos “podres poderes” hoje vigentes, no Brasil e no mundo.

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