Bolsonaro e Lula usam dados incorrectos e trocam farpas na recta final das eleições no Brasil

A Lupa, parceira do PÚBLICO na cobertura das eleições do Brasil, verificou algumas das principais declarações dos dois candidatos.

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Lula da Silva e Jair Bolsonaro lideram as sondagens de intenção de voto UESLEI MARCELINO/REUTERS

Informações incorrectas, exageros sobre suas gestões e provocações marcaram mais uma semana de disputa pela presidência do Brasil entre os candidatos Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL), que lideram as sondagens de intenção de voto mais recentes. A votação na primeira volta será no dia 2 de Outubro.

No seu discurso na abertura da 77.ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, na terça-feira (20), Bolsonaro citou dados falsos sobre a preservação da Amazónia e o fim da corrupção no país, quando fez referência indirecta a Lula. O presidente ainda minimizou, mais uma vez, os efeitos da pandemia de covid-19, distorcendo dados sobre vacinação e omitindo o alto número de mortes pela doença.

Lula voltou a exagerar dados sobre seu governo, como a geração de empregos, e mencionou informações incorrectas sobre reajustes salariais durante entrevista ao apresentador Ratinho, no SBT, na quinta-feira (22). O ex-presidente também fez críticas directas a Bolsonaro, especialmente quando Ratinho perguntou sobre sua avaliação da condução do país durante a pandemia.

A Lupa, parceira do PÚBLICO na cobertura das eleições do Brasil,​ verificou algumas das principais declarações dos dois candidatos, que foram contactados e não responderam. Confira:

“No meu governo, extirpamos a corrupção sistémica que existia no país”

Jair Bolsonaro (PL), Presidente e candidato à reeleição, em discurso na abertura da 77.ª Assembleia Geral da ONU, em 20 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Falso

O governo de Jair Bolsonaro (PL) é alvo de diversas acusações de corrupção. Neste ano, por exemplo, veio à tona que dois pastores evangélicos controlavam a agenda e a atribuição de verbas do MEC durante a gestão de Milton Ribeiro. Reportagens mostraram que os dois pediam propina [suborno] para os municípios terem acesso a verbas da pasta. O ex-ministro chegou a ser preso por causa desse caso. Um dos pastores visitou o Palácio do Planalto em pelo menos 35 oportunidades — e Bolsonaro decretou sigilo sobre essas visitas.

No ano passado, o ex-director do Departamento de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias foi acusado de pedir propina [suborno] para autorizar a compra de vacinas pelo governo. Conforme a denúncia, divulgada pela Folha de S. Paulo em Junho de 2021, Dias teria condicionado a aquisição de imunizantes da AstraZeneca ao recebimento ilícito de US$ 1 por dose.

Já o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles é investigado por facilitar venda e exportação ilegal de madeira. O ex-ministro do Turismo Marcelo Álvaro Antônio foi denunciado em Outubro de 2019 pelo esquema de candidaturas-laranjas [de fachada] do PSL, no ano anterior.

Há, ainda, o chamado “orçamento secreto” — emendas parlamentares cuja destinação não é divulgada publicamente, que chegaram a 16,5 mil milhões de reais [3,3 mil milhões de euros] somente em 2022. Também existem diversas suspeitas de corrupção envolvendo emendas do orçamento secreto, incluindo a compra irregular de kits de robótica inflacionados em escolas de Alagoas e Pernambuco e fraudes no SUS.


“Na Amazónia brasileira (...) mais de 80% da floresta continua intocada”

Jair Bolsonaro (PL), Presidente e candidato à reeleição, em discurso na abertura da 77.ª Assembleia Geral da ONU, em 20 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Exagerado

Embora 82,1% da Amazónia seja coberta por vegetação nativa (página 2), segundo dados mais recentes do MapBiomas, isso não significa que toda essa área esteja, de facto, “intocada”. Pelo sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que mostra o acumulado de área desmatada no bioma, não é possível discernir que áreas estão degradadas — ainda que tenham árvores de pé — das áreas que ainda estão preservadas.

Uma área é considerada degradada quando sofre alguma acção natural ou humana que a altera e limita a capacidade de recuperação, como queimadas, por exemplo. Nem sempre esses espaços são mapeados pelos sistemas que monitoram o desmatamento. Em 2020, um grupo de investigadores alertou, em artigo na revista científica Science, que a área degradada ou “empobrecida” na região amazónica já era maior que a desmatada ou “desaparecida” — portanto, mais do que 18%.

Vale salientar que, em Agosto deste ano, o Sistema de Alertas de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazónia (Imazon) mostrou que a área degradada no bioma pela extracção de madeira e queimadas chegou a 976 quilómetros quadrados. Isso representa um aumento de 5322% em relação a Agosto de 2021, quando foram registados 18 quilómetros quadrados.

Além disso, o desmatamento em si, ou seja, o derrube de árvores, aumentou nos últimos três anos consecutivos, segundo o sistema Prodes, do Inpe. Em 2021, atingiu 13.038 quilómetros quadrados, a maior taxa desde 2006. Entre 1985 e 2020, a Amazónia brasileira perdeu 45,2 milhões de hectares de vegetação nativa, o que equivale a 11,6% da sua cobertura original.

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Bolsonaro numa acção de campanha em Belém REUTERS/Raimundo Pacco

"Temos mais de 80% de população vacinada contra Covid"

Jair Bolsonaro (PL), Presidente e candidato à reeleição, em discurso na abertura da 77.ª Assembleia Geral da ONU, em 20 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Verdadeiro, mas

Segundo dados do consórcio de meios de imprensa, 86,6% da população brasileira recebeu a primeira dose da vacina contra covid-19, e 79,4% tem o ciclo vacinal completo — sem considerar doses de reforço. Os dados são de 19 de Setembro de 2022. Contudo, a vacinação no Brasil começou em ritmo lento, enquanto, ao mesmo tempo, o número de casos e mortes pela doença atingiu seu pico, no início de 2021.

A vacinação contra a covid-19 no Brasil começou em 17 de Janeiro de 2021 — 40 dias depois de a primeira pessoa do mundo, excepto voluntários em testes, ter recebido o imunizante no Reino Unido, em 8 de Dezembro de 2020. Antes do Brasil, no entanto, pelo menos 47 países já haviam iniciado a imunização contra a doença.

Vale salientar que a primeira vacina contra o SARS-CoV-2 no país foi a CoronaVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan, em São Paulo, em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac. Essa fórmula foi criticada por Jair Bolsonaro em pelo menos 10 ocasiões antes de começar a ser aplicada na população brasileira.

Em 21 de Outubro de 2020, por exemplo, o Presidente afirmou que o governo federal não compraria as doses da CoronaVac e que o povo brasileiro não seria “cobaia de ninguém”. Ele também chamou a CoronaVac de “vacina chinesa de João Doria”.

Além disso, a campanha de vacinação no Brasil começou em ritmo lento. Até 18 de Abril de 2021, apenas 4,5% da população já tinha recebido a segunda dose das vacinas até então disponíveis. Em Maio daquele ano, o ritmo de aplicação caiu ainda mais. Em Julho de 2021, seis meses após o início da campanha, apenas 13% da população brasileira tinha vacinação completa contra a doença — naquela altura, 525 mil pessoas tinham perdido a vida em decorrência do novo coronavírus.


“Nos últimos meses chegam por dia e a pé cerca de 600 venezuelanos [no Brasil]”

Jair Bolsonaro (PL), Presidente e candidato à reeleição, em discurso na abertura da 77.ª Assembleia Geral da ONU, em 20 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Exagerado

Segundo o Informe de Migração Venezuelana da Casa Civil, que regista o controlo migratório de entradas e saídas do país, de Janeiro a Julho de 2022 (último mês registado da série), chegaram ao país 87.836 migrantes venezuelanos. Esse número representa 414 pessoas por dia.


“O Brasil foi o quarto maior destino de investimentos estrangeiros directo no mundo”

Jair Bolsonaro (PL), Presidente e candidato à reeleição, em discurso na abertura da 77.ª Assembleia Geral da ONU, em 20 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Verdadeiro

O Brasil recebeu o quarto maior volume de investimentos estrangeiros no primeiro trimestre de 2022 (Janeiro a Março), comparando dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) divulgados em Julho deste ano e relatório publicado pelo Banco Central (BC) em Setembro.

Nos primeiros três meses do ano, o Brasil atraiu US$ 27,88 mil milhões (28,6 mil milhões de euros) em investimentos estrangeiros (tabela 8, página 10, do relatório do BC). Com isso, ficou atrás de China (US$ 101,91 mil milhões — 104,5 mil milhões de euros), Estados Unidos (US$ 66,91 mil milhões — 68,6 mil milhões de euros) e Austrália (US$ 59,31 mil milhões — 60,8 mil milhões de euros), cujos resultados constam na página 14 do levantamento da OCDE. Dados compilados aqui.

O Brasil atrasou a divulgação da série de indicadores neste ano. Foi por isso que as informações não entraram no documento publicado pela OCDE em 18 de Julho de 2022. No ano passado, o Brasil também ficou em quarto lugar no ranking.


“A queda de 7,7% no número de feminicídios”

Jair Bolsonaro (PL), Presidente e candidato à reeleição, em discurso na abertura da 77.ª Assembleia Geral da ONU, em 20 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Falso

Durante o governo Bolsonaro, houve aumento de 9,1% de casos de femicídio no Brasil. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2018, último ano da gestão Michel Temer (MDB), houve 1229 registos (página 116) desse crime no país. Em 2021, último ano com números disponíveis para consulta, o número subiu para 1341 (página 16).

Em 2020, foram 1354 casos desse tipo de violência (pág. 148; anuário com informações mais actualizadas) e, em 2019, 1328 (pág. 4). Todos os indicadores para esse tipo de crime no governo Bolsonaro são superiores ao total registado no final da gestão Temer.

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Materiais das campanhas de Lula e Bolsonaro lado a lado, no Rio de Janeiro RICARDO MORAES/REUTERS

“(...) [Durante os governos do PT] o salário mínimo aumentou 77%”

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato à Presidência da República, em entrevista ao programa Candidatos com Ratinho, do SBT, no dia 22 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Verdadeiro

Entre Janeiro de 2003, primeiro ano de governo de Lula, e Janeiro de 2016, meses antes de Dilma Rousseff (PT) deixar o cargo, o aumento real do salário mínimo — ou seja, acima da inflação — foi de 75,03%. O levantamento é do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconómicos (Dieese) (página 4) e considera a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC).


"Todas as categorias de trabalhadores organizadas recebiam aumento acima da inflação [durante os governos do PT]"

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato à Presidência da República, em entrevista ao programa Candidatos com Ratinho, do SBT, no dia 22 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Falso

Em nenhum ano dos governos do PT todas as categorias receberam aumento acima da inflação. Entre 2004, segundo ano de Lula no poder, e 2015, último ano completo de Dilma, a maioria das categorias de trabalhadores recebeu aumento acima da inflação — a quantidade variou entre um máximo de 93,6% em 2012 e 52% em 2015. Em 2003, primeiro ano de Lula, a maior parte das categorias (58,2%) recebeu reajuste salarial abaixo da inflação. Os dados são do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconómicos (Dieese).


"Hoje, nem 10% recebe [acima da inflação]"

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato à Presidência da República, em entrevista ao programa Candidatos com Ratinho, do SBT, no dia 22 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Falso

De acordo com Dieese, 20,5% das categorias receberam reajuste acima da inflação entre Janeiro e Agosto de 2022 (página 4). No mesmo período, 36,4% receberam índice de reajuste igual à inflação e 43,2% abaixo.


"Um cara [Geraldo Alckmin] que foi governador de São Paulo 16 anos e vice seis anos"

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato à Presidência da República, no debate realizado por Band, Folha de S. Paulo, TV Cultura e UOL no dia 28 de Agosto de 2022

Avaliação da Lupa: Exagerado

Geraldo Alckmin foi governador de São Paulo, pelo PSDB, durante 12 anos e quatro meses (6 de Março de 2001 a 31 de Março de 2006; e entre 1º de Janeiro de 2011 e 6 de Abril de 2018). Foi vice-governador de São Paulo, também pelo PSDB, durante 6 anos e 2 meses (entre 1º de Janeiro de 1995 e 6 de Março de 2001).

Alckmin foi eleito vice-governador de São Paulo, em 1994, na candidatura liderada por Mário Covas, assumindo o cargo em 1995. A candidatura foi reeleita em 1998. Em 6 de Março de 2001, Covas morreu em decorrência de um câncer, e Alckmin assumiu o governo de forma definitiva — ele chegou a assumir o cargo de governador interino em diversas ocasiões, incluindo quatro meses durante as eleições de 1998.

Em 2002, foi reeleito governador de São Paulo. Ele permaneceu no cargo até 31 de Março de 2006, quando saiu para concorrer a Presidente — e foi derrotado por Lula.

Novamente pelo PSDB, Alckmin foi eleito governador de SP em 2010 e reeleito em 2014. Em 6 de Abril de 2018, deixou o cargo para concorrer mais uma vez à presidência da República — dessa vez, sendo derrotado por Jair Bolsonaro (na época no PSL).

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“Emprestei 15 bilhões [de dólares] para o FMI”

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato à Presidência da República, em entrevista ao programa Candidatos com Ratinho, do SBT, no dia 22 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Exagerado

Em 2005, o Brasil quitou a dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e, pela primeira vez, emprestou dinheiro para a instituição quatro anos depois. No entanto, o valor é menor que o informado pelo petista, foram emprestados US$ 10 mil milhões [10,3 mil milhões de euros] — e não US$ 15 mil milhões [15,4 mil milhões de euros], como disse Lula.


“Quem começou fazer o metro de Caracas [capital da Venezuela] foi o Fernando Henrique Cardoso”

Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato à Presidência da República, em entrevista ao programa Candidatos com Ratinho, do SBT, no dia 22 de Setembro de 2022

Avaliação da Lupa: Verdadeiro

As obras de expansão do metro de Caracas, na Venezuela, foram realizadas graças a um contrato de financiamento com o BNDES firmado quando o Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ainda era Presidente. O pagamento da primeira parcela do crédito, no valor de US$ 107,5 milhões [110,3 milhões de euros], aconteceu em 2001 — Lula só assumiu o governo em Janeiro de 2003. Esse valor foi pago para o consórcio liderado pela construtora brasileira Odebrecht, responsável pela construção.

Em 2004, já no governo do petista, a Odebrecht recebeu outro crédito, no valor de US$ 78 milhões [80 milhões de euros] do BNDES. Outro desembolso foi feito em 2009, também na gestão de Lula, para construção da Linha 5 do Metro de Caracas. Os desembolsos a partir de 2015 para essa obra foram suspensos. Vale salientar que a Venezuela não pagou prestações que devia ao banco brasileiro. O valor foi pago pelo Fundo Garantidor de Exportações (FGE).


Este trabalho resulta de uma parceria entre o PÚBLICO e a Agência Lupa.

Autores: Arthur Schiochet, Bruno Nomura, Carol Macário, Catiane Pereira, Gabriela Soares, Iara Diniz, Maiquel Rosauro e Nathália Afonso

Edição: Chico Marés, Leandro Becker, Marcela Duarte e Maurício Moraes

Conversões de moeda para euros à data de publicação deste artigo.

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