A chama

A arrogância sobre o amor dura até a benevolência do outro nos permitir.

Até acontecer, o amor é a coisa mais difícil de se encontrar. Depois de encontrado, o amor pode ser o mais complicado que nos aconteceu.

Fosse o amor simples, e não lhe atribuíamos tanta importância, nem eu estava a escrever mais este texto. (Nem ouvia em repeat as canções que ouço ou voltava aos mesmos livros.) Talvez a coisa que mais me fascine no amor seja a forma como nos apanha de surpresa. Assalta-nos, ou então, porque tem vida própria, urde um plano contra nós, para nos apanhar. Uma teia. Se há cama onde gostamos de cair primeiro, é nessa teia do amor: a que se constrói antes. Aquela a que chamamos sedução.

Muitos de nós ficariam a vida toda a seduzir. Uma intermitência que não traz dor nem nos fixa ao chão: só faz mal aos outros. A sedução é matreira porque nos traz uma aparente leveza, mas, com o passar do tempo, pode tornar-se sombria. Admito a sedução em estado permanente quando somos novos e, para além das nuvens, não pensamos sequer no céu. Depois, seduzir por sistema pode tornar-se criminoso, mas quem sou eu para denunciar essa chama alheia?

Deixarei a sedução para outra mudança de lençóis. É ao amor que me agarro.

As pessoas têm por vezes uma ideia de estar no controlo da situação: não gostam assim tanto, mas também não se importam de continuar. Não perdem o sono, mas também não é essa paixão morna que as faz levantar da cama. E assim podemos continuar muito tempo. Algum tempo, porque tudo muda no dia

em que a outra pessoa se cansa e não quer mais. Não quer mais ouvir desculpas, nem pretextos muito ligeiros para não haver cinema, jantar ou fim-de-semana. Nós não percebemos a nossa arrogância e prepotência perante o amor até sermos preteridos. Às vezes, os corajosos trocam-nos por nada. Porque nada é melhor do que a desculpa colada a cuspe.

A arrogância sobre o amor dura até a benevolência do outro nos permitir. Amar implica aceitar, sim, mas com um limite que se mede bem de fora. Um dia acorda-se e o outro não foi a primeira coisa que nos surgiu no pensamento. E aí muda-se, não só a cama como os planos que tínhamos e que nunca detivemos.

Somos apanhados na curva quando nos julgávamos os maiores, mas afinal éramos tão frágeis e falíveis como a pessoa que tínhamos ao nosso lado. Tínhamos. Podemos deixar de ter.

O amor é um equilíbrio danado que nos consome e apaga. E reacende-nos depois voltando à tal chama. «You can’t start a fire without a spark.» Ouvi isto vezes sem fim não percebendo verdadeiramente o que queria dizer. Até ser apanhada pelo fogo. Há uma humildade perante o amor que só conhecemos em perda. E não é garantido que todos aprendam. Não é garantido que quem antes mentiu e traiu não o faça de novo, mas a vida é tão curiosa que nos lança escadas várias e nos atira abaixo com um safanão muito ligeiro. Quem nunca foi sacudido que desça já do primeiro degrau.

Talvez as perdas do amor sejam mesmo relevantes para o passarmos a olhar de forma séria: como a um jardim bonito que não se fez sozinho. Como a uma casa que foi sonhada e depois construída. Desculpem os clichés. O amor é o maior de todos. Desrespeitar-lhe as regras é ser pouco inteligente.

Sim, o amor é feito de inteligência e humildade. Ambas têm de se conjugar para edificarmos algo mais do que a tal sedução. Um piscar de olho é muito pouco para um dia inteiro. É que os dias são feitos de muitos olhares.

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