Chegou o Outono e o conflito da água com Espanha está à vista

O ano hidrológico 2021/2022 termina com as reservas hídricas na Península Ibérica a bater no fundo. Em Espanha estão em 34,2% da sua capacidade máxima e em Portugal o volume armazenado é 53,69%.

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“Não à transferência para Portugal” foi outra das palavras de ordem mais ouvida na concentração que várias associações de regantes das regiões de Zamora, Salamanca e León, realizaram em Léon Miguel Manso

Os agricultores que têm as suas explorações na chamada “Horta da Europa” em Espanha estão confrontados com a escassez crescente de recursos hídricos para regar 3,8 milhões de hectares de regadio e sustentar o seu modelo pecuário com dezenas de milhões de bovinos, porcos e aves, concentrados em mega explorações.

Afectados pela escassez de água, milhares de agricultores espanhóis levaram esta segunda-feira os seus tractores para o centro da cidade de Leão. Os manifestantes, vindos das regiões de Salamanca, Zamora e Leão, exigem travar o volume de água que está destinado a Portugal, nos termos da Convenção de Albufeira. Porém, os protestos não se limitam nem aos agricultores nem ao Norte da Península Ibérica: há já muitos que reclamam por uma revisão que actualize o acordo que serve para gerir os rios partilhados por Espanha e Portugal.

Dados publicados pelo Ministério da Transição Ecológica (Miteco) no início de Setembro referem que actualmente a reserva hídrica em Espanha é de 19.209 hectómetros cúbicos (um hectómetro equivale a 100 metros) quando tem capacidade para armazenar 56.136 hm3.

E o Outono que está a chegar não traz boas notícias. A Agência Estatal de Meteorologia (Aemet) prevê que no trimestre de Outubro a Dezembro “terá temperaturas acima do normal e haverá menos chuva”. As consequências de um cenário que apresenta contornos dramáticos já se fazem sentir em território espanhol.

Em Espanha as reservas hídricas estão em 34,2% da sua capacidade máxima e em Portugal o volume armazenado é 53,69%.

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A Convenção de Albufeira é um tratado internacional que regula a transferência água de Espanha com Portugal através dos rios internacionais Nelson Garrido

“Se nos tiram a água, tiram-nos o pão”

Esta segunda-feira, os agricultores espanhóis das regiões de Salamanca, Zamora e Leão deixaram claro que querem travar o envio de 400 hm3 de água para Portugal através do rio Douro, uma operação iniciada na passada semana e que vai decorrer até dia 30 de Setembro. Cerca de 3000 pessoas concentraram-se com mais de 300 tractores na cidade de Leão para exigir alterações ao acordado no âmbito da Convenção de Albufeira, em vigor desde o dia 17 de Janeiro de 2000, para que seja reduzido o volume de água a enviar para Portugal através do rio Douro.

O mal-estar gerado nos agricultores de Salamanca, Zamora e Leão está associado ao envio de 400 hm3 para Portugal no espaço de apenas duas semanas a terminar no dia 30 de Setembro. Esta decisão alimentou uma das palavras de ordem mais ouvidas na concentração: “Se nos tiram a água, tiram-nos o pão”, expressão de revolta depois de os agricultores terem recebido a informação que a transferência de água se destinava à produção de energia hidroeléctrica nas barragens instaladas no troço português do rio Douro, opção que colocou em risco as culturas de regadio no próximo ano.

A Convenção de Albufeira é um tratado internacional que regula a transferência de água de Espanha com Portugal através dos rios internacionais que obriga o país vizinho a enviar anualmente 3700 hm3 no rio Minho, 7300 no rio Douro, 2700 hm3 no rio Tejo e 600 hm3 no rio Guadiana. No total, o país vizinho está obrigado a transferir em anos normais 14.300 hm3.

O acordo de partilha de águas e distribuição de caudais tem volumes acordados para serem enviados ao longo dos quatro trimestres do ano. Assim, e segundo a informação da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), o país vizinho tem de lançar 570 hm3 no rio Douro e 130 hm3 no rio Tejo, a partir de 1 de Julho e até 30 de Setembro.

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“O desafio não é a seca, mas a escassez” PR/Arquivo

“Não à transferência para Portugal” foi outra das palavras de ordem mais ouvida na concentração que várias associações de regantes das regiões de Zamora, Salamanca e León, realizaram em Léon. Os dirigentes das várias associações de regantes, agricultores e produtores de gado não pouparam nas críticas e reclamações à vice-presidente e ministra da Transição Ecológica e Desafio Demográfico, Teresa Ribera, deixando claro o sentido da sua reivindicação: ‘Não à transferência para Portugal. Água + juventude = futuro”.

Alguns dos manifestantes pediram a demissão de Teresa Ribera, se esta não der acolhimento às reivindicações dos agricultores que se sentem lesados pelo envio de água para Portugal, e que passam por não permitir mais descargas para o Douro. O dirigente da Associação de Regantes do Páramo Bajo deixou claro: “Queremos o diálogo, mas se a ministra não dialogar, vamos usar a força, de outra forma...”

A descarga de 400 hm3 deixará a albufeira Almendra, a terceira com maior capacidade em Espanha, num nível historicamente baixo. No momento em que as águas começaram a ser libertadas tinha uma reserva de apenas 861 hm3. Vai ficar com cerca de metade deste valor.

Problemas pela água do Tejo

Para cumprir o acordo de Albufeira mais a Sul, na bacia hidrográfica do Tejo, as autoridades espanholas estão a efectuar descargas de 126 hm3 de caudal a partir das barragens de Alcântara e Cedillo, na Extremadura.

Os caudais que estão a ser transferidos no rio Tejo também geram apreensões na população da cidade de Cáceres. O presidente do Ayuntamiento, Luis Salaya, já garantiu aos seus munícipes que o envio de água não colocará em risco o abastecimento público nesta cidade espanhola.

Segundo adiantou, terá sido garantido pelos responsáveis da Confederação Hidrográfica do Tejo (CHT) que o nível da albufeira de Alcântara não descerá abaixo dos 194 metros acima do nível do mar, cota mínima que permite o funcionamento das bombas de captação de água destinada ao abastecimento das populações. Neste momento, a cota da albufeira está nos 195 metros acima do nível do mar.

Faustino Sutil, subdelegado do Governo espanhol, salientou que o secretário de Estado do Ambiente, Hugo Morán, pretende reunir com as associações de regantes para analisar possíveis alterações à Convenção de Albufeira, tendo em conta as alterações climáticas que alteraram substancialmente as reservas de água nos últimos anos. “Talvez este ano de seca se tenham detectado pontos a rever” no acordo com Portugal, explicou Sutil.

O desafio

O “Acordo de cooperação para a protecção e uso sustentável das águas das bacias hidrográficas hispano-portuguesas” (Convenção de Albufeira) foi assinado numa altura em que a região de Leão e as áreas de irrigação estavam muito longe dos actuais 100.000 hectares dedicados ao consumo de água desses recursos.

Neste momento, Espanha está a regar 3,8 milhões de hectares e os níveis das principais bacias hidrográficas em relação à sua capacidade total são os seguintes: o Guadalquivir é de 22%; o Guadiana, com 24,5%; o Tejo, em 37,7%; o Douro, com 37,8%, e o Ebro, com 43,3%.

“O desafio não é a seca, mas a escassez”, observa Rafael Seiz, responsável pelo programa Água do World Wildlife Fund (WWF), frisando que “a diferença entre a seca natural e a escassez é muito ilustrativa do desequilíbrio entre oferta e a procura de água”. “A Espanha usa mais água por ano do que a França, Portugal, Grécia ou Itália, e também do que a Alemanha e três quartos para a agricultura, grande consumidora de água.”

Jaime Martínez Valderrama, investigador no Instituto Multidisciplinar de Estudos do Ambiente da Universidade de Alicante, refere que “é extremamente urgente mudar o modelo de relação que temos com a água. Falta água porque consumimos muita água, muito mais do que temos.”