Livro de reclamações das saudades

Nós temos saudades de não ter saudades.

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" A tristeza é um pára-brisas numa valsa sem fim" Maria Inês

Caminhei até ao gabinete que dizia “Apoio ao Cliente” e esperei pela minha vez. Andei para trás e para a frente. Estava nervosa, mas, ao mesmo tempo, tinha deixado os sentimentos num saco que deitei fora. Um saco de plástico branco, vulgar, sem história ainda, ali misturado com o vazio dos outros. Os meus sentimentos feitos em nada, eu sem corpo, pouca dignidade quando as lágrimas se misturaram com a voz. É terrível quando a voz e as pernas fraquejam ao mesmo tempo, e as cordas vocais ficam quase líquidas. Pedi o livro de reclamações e chorei. Ia longo o dia, mas, sabem, o sofrimento pode não caber em dias formatados, horas certas. São minutos feitos anos. A tristeza é um pára-brisas numa valsa sem fim.

Quando a porta se abriu, e eu era a última da fila, o relógio marcava as seis da tarde, e eu levei a mão aonde diz “Puxe”. Precipitei a minha queixa. Fiz o que tinha a fazer.

Vamos à parte importante: chovia. O dia ia longo, como já disse, o meu desconforto escorregava-me de todas as partes impensáveis. O corpo pesava. Muitas vezes nesse dia pensei: e agora, como me vou levantar?

Na verdade, eu queria pedir o livro de reclamações das saudades. Pensem nesse livro que circula de mão em mão e que vai ser escrito a lágrimas permanentes, a raiva e dor. Às vezes, a bonomia. Uma tranquilidade que se fez estranhamente forte.

– Quero reclamar das saudades que tenho: dos meus pais, de ser miúda, do primeiro amor que vivi, da primeira amiga que mostrou que o era, do amigo que me fez sentir viva, da canção que ouvi na rádio e que me passou a impressão de estar num teledisco. Quero reclamar de não ter dor alguma. Dos segundos em que fui uma flor a abrir e um pássaro a anunciar a Primavera. Do amor que não vinha impregnado de passado e que nascia só no presente. Da sensação de estarmos perante uma história mesmo nova. Do livro que cheirava a papel novinho em folha. De ser Natal e de querermos não mais do que isso.

Quero o livro de reclamações das saudades que tenho de não pensar que era a saúde o mais importante: tantas vezes pensei que o importante era não ter aquela borbulha na cara. Saudades de não imaginar que nunca – nunca – ouviria o meu pai a pedir-me desculpas, a minha mãe a olhar-me já sem fazer perguntas. Tenho saudades do tempo em que não pensei pegar-lhe um dia nas mãos frágeis e de só essa imagem acabar comigo. Ser uma tempestade que fustigou os ossos, as falanges, as lágrimas que escaparam para dentro dos olhos. Escorrem sem as ver. Às vezes ficam presas num nó que não existe na garganta. Não passam. Não vou reclamar disso no livro. Já tinha essa dor comigo desde que me conheço.

Escrevo mais uma página no livro de reclamações das saudades: aqueles dias em que comíamos um gelado até ao fim e não pensávamos se, depois disso, a T-shirt do Sandokan nos ia servir. Saudades do tempo em que não simulávamos um sorriso para a câmara, em que guardávamos um momento especial para nós sem nos importarmos com tudo aquilo que os outros pudessem pensar.

Reclamo. Reclamo muito. Não queria escrever mais nada para não me doer a mão e o peito, mas uma bátega cai na estação onde espero o comboio que me traz de regresso a casa e, enquanto ele não vem, preencho as páginas todas do livro de reclamações. Saudades tantas de tudo. Como é que é possível hoje, depois de se viver tanto, de rir, de comer e brindar mais, dizer-se que só se tem saudades do futuro?! Que mentira. Que men-ti-ra.

Nós temos saudades de não ter saudades. Do tempo em que o verão era uma promessa para sempre, sem sofrimento. Em que chovia no Inverno e nós ainda não nos apercebíamos da beleza da coreografia das andorinhas. Meu Deus, eu não sabia que um dia isso seria o suficiente para me sentir inteira!

Quem me dera agora, na estação, que as andorinhas se esquecessem da Primavera e dançassem em bando para mim. Quem me dera que a Primavera viesse para me fazer esquecer o dia. Os dias. O livro de reclamações das saudades.

“Puxe” – eu abri a porta e, pressinto, nunca mais a fecharei.

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