Série Praxx inspirou-se na tragédia do Meco para falar de praxe — e os pais das vítimas indignaram-se
Série, que se estreia esta sexta-feira na Opto, da SIC, conta a história de seis universitários que desaparecem no mar. Realizadora confirma que é inspirada no caso da praia do Meco, mas sublinha que não foram retratadas pessoas reais. Famílias lamentam não terem sido informadas. “Foram apanhados completamente de surpresa”, diz o advogado.
Dia 11 de Janeiro. Três horas da manhã. Um grupo de seis jovens universitários desaparece no mar, na praia fictícia de São João da Cruz. Gonçalo, o dux da Associação Vida Académica (AVA), é o único sobrevivente.
Os primeiros minutos da série Praxx, que se estreia esta sexta-feira na Opto (plataforma de streaming da SIC), podem ser para muitos espectadores um recuo a Dezembro de 2013, mais precisamente à tragédia da praia do Meco, em que seis jovens morreram afogados, alegadamente na sequência de uma praxe. Na verdade, o paralelismo estabelecido entre a realidade e a história ficcionada não é mera coincidência – e está desde logo assumido no primeiro episódio, facultado pela produção ao P3. “Inspirada em eventos reais”, lê-se, antes de surgirem as personagens Diana, Afonso, Mafalda, Xana, Lucas e Mateo.
A realizadora Patrícia Sequeira confirma-o: a série inspira-se no caso do Meco. “É uma inspiração, de facto incontornável, porque quando se quer falar das praxes este foi o acontecimento mais trágico e mais mediático. Para mim foi um ponto de partida fundamental”, explica.
Mas ao longo dos 12 episódios, disponíveis a cada sexta-feira, vão surgir situações que aconteceram noutros grupos académicos. “Pode ter sido em Braga, pode ter sido no Minho”, acrescenta a realizadora, sem adiantar pormenores. Contudo, reforça, trata-se de uma obra de ficção que tem como objectivo lançar o debate sobre as praxes académicas abusivas que continuam a existir em Portugal. O número de denúncias tem diminuído nos últimos anos: 18 no ano lectivo 2016/2017, dez em 2017/2018, nove em 2019/2020 e sete em 2021/2022, segundo dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior enviados ao P3.
Na mesma linha, o facto de existirem eventos reais influenciou o modo como o projecto foi dirigido e exigiu um certo distanciamento sobre a forma como a história é contada. Daí a criação da personagem Marta (Madalena Almeida), irmã de Diana, que tenta perceber o que aconteceu. “Esta personagem tem um fio condutor e é completamente ficcionada – tal como as outas –, mas [com ela] éramos ainda mais livres, porque é ela que nos conduz a história”, revela a realizadora.
Voltando ao primeiro episódio, que foi exibido em antestreia na SIC no domingo, a narrativa escrita por Ana Lúcia Carvalho oscila entre as horas que antecedem a tragédia e os dias seguintes de busca pelos jovens e de investigação sobre o que terá acontecido. Marta assume o desenrolar da acção. Procura respostas na casa que os jovens arrendaram em São João da Cruz, junto da AVA e dos caloiros que fazem parte do grupo.
“As pessoas acham que vão ver um documentário e é esse o grande erro. Seguramente não vão ver essa história [tragédia do Meco], vão ver muito mais do que isso”, garante Patrícia.
Famílias das vítimas lamentam adaptação do tema
“Não quero agarrar numa tragédia, não é isso que me interessa. Quero falar sobre o tema das praxes”, esclarece a realizadora.
Por outro lado, as famílias, representadas pelo advogado Vítor Parente Ribeiro, têm uma opinião diferente: a produtora e o canal estão a explorar a dor como forma de propaganda e em nome das audiências.
“Quer dizer, por um lado vêm dizer que é uma obra de ficção e por outro têm a coragem de afirmar que é baseada na tragédia do Meco para promoverem a própria série. Isso não é correcto”, aponta o advogado.
Os pais, que souberam da existência da série no mesmo dia em que foi anunciada, gostariam apenas de ter sido informados, destaca Vítor Parente Ribeiro. “Acho que a produção e os realizadores estiveram mal. Deviam pelo menos ter dado uma justificação. Assim [os pais] foram apanhados completamente de surpresa”, revela, acrescentando que as semelhanças da trama com os eventos reais vão libertar a mesma “mágoa” nove anos depois.
Patrícia Sequeira já esperava estas reacções e diz até compreender as opiniões dos familiares, mas destaca que em nenhum momento retratou pessoas reais. “Espero que, no fim, depois de verem a série, fiquem mais apaziguados. Mas compreendo”, afirma a realizadora, autora de filmes como Bem Bom (2020) e Snu (2019).
Para um mero espectador, responde Vítor Parente Ribeiro, é fácil distinguir a ficção da realidade, mas aos olhos destes pais são os filhos e não as personagens que estão na praia e que desaparecem no mar. Também já conhecem o final. “Alguns já me disseram que nem sequer vão ver. É um reavivar do trauma e isso é o continuar do acumular, do massacrar e do bater na dor que está dentro deles.”
Questionada pelo P3, fonte oficial da SIC garante ter o maior respeito pelos familiares e pela memória das vítimas, mas lembra que a série “é inspirada em eventos reais, como o são outras formas de arte, mas sem relação com pessoas ou cenários verídicos”.
Do ponto de vista do advogado, esta não é uma justificação válida, e dá como exemplo o filme Encontro Silencioso (2018), realizado por Miguel Clara Vasconcelos, que falou previamente com os pais e os preparou “para a dureza de algumas imagens”. Mas, diz, as famílias não vão tocar mais neste assunto. “Os actos também ficam para quem os pratica”, conclui.
Já a SIC destaca que o facto de o livre consentimento nas formas de integração universitária ser “estrutural e já ter provocado dolo” não é motivo “para ser ignorado e esquecido e com isso tornar vãs as consequências de submissão e dor de milhares de cidadãos que possam ter vivido alguma situação semelhante”, lê-se no comunicado.
Notícia actualizada às 16h03 de 22 de Setembro de 2022: foram acrescentados dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior sobre o número de denúncias de praxes abusivas nos últimos anos.