Saúde: o turning point? Reflexões de fim de Verão

Mudar de política e de intérprete, que personifique um novo espírito e uma visão mais abrangente não prisioneira de arquétipos passados é necessário, bem como respeito pela verdade, coragem e determinação na acção.

Pior que ter uma doença é ser uma doença

José Ortega y Gasset

O retrato da Saúde em Portugal no relatório da OCDE Health at a Glance 2021 e os resultados financeiros com défices e dívidas no SNS e o aumento continuado da despesa são um alerta. A tirania da realidade: give me the facts! como exigia Bertrand Russell.

Sobre a herança recente no Ministério da Saúde, de Outubro de 2018 a Agosto de 2022, já muito se escreveu. Sobrevivemos à pandemia graças ao empenhamento e dedicação dos profissionais, apesar de políticas erradas na organização da resposta e em detrimento de muitos outros problemas graves de Saúde. Acabámos nos últimos lugares do ranking europeu. Persiste incremento significativo da mortalidade global e materna, revelou-se incapacidade de previsão cuja consequência foram urgências hospitalares yo-yo com relevo dramático na Obstetrícia.

Agravaram-se os atrasos nas listas de espera para consultas e cirurgias, houve incremento brutal do número de cidadãos sem médico de família – uma promessa reiterada e falhada - e assistiu-se a incapacidade de mitigar problemas crónicos como a sobrecarga da urgência hospitalar. A que se deve acrescentar a deterioração no seguimento clínico em situações graves, como Diabetes, Saúde Mental e Oncologia, quer nos rastreios como no tratamento precoce.

Estabeleceu-se um padrão de diálogo difícil e não mobilizador com os profissionais e com os parceiros do Sistema de Saúde, o abandono do serviço público por médicos não foi estancado nem reduzido. E os portugueses continuam a estar nos lugares cimeiros em despesas individuais – out-of-pocket – para serviços de Saúde. Nada disto coincide com a narrativa oficial que apela à continuidade desta Política de Saúde.

Sejamos claros. Essa política que apelou ao regresso à utopia fundacional - SNS dominante com os outros sectores reduzidos a dimensão acessória - marcou um corte abrupto no pragmatismo inteligente que facilitou o desenvolvimento do SNS e articulação funcional com as instituições do sector privado e social e uma dissociação da realidade. Julgou que, por decreto, se eliminariam décadas de desenvolvimento do sector privado, se apagaria o impacto positivo das parcerias público-privadas na gestão de hospitais públicos e que bastaria uma nova Lei de Bases da Saúde para conformar a realidade à narrativa pretendida. Marcou uma viragem política significativa face a pragmatismo inteligente do passado.

Deve esta política continuar? Ou, para fazer face aos desafios da Saúde em Portugal e para responder às necessidades dos cidadãos numa época de potenciais constrangimentos financeiros previsíveis, impõe-se nova política, para que a crise não se transforme em doença incurável?

O dever de cidadania impõe discussão sobre as políticas e não sobre pessoas. Mas dois requisitos são fundamentais. Primeiro, respeito pela Verdade e Rigor na avaliação das disfunções do sistema e situação financeira e coragem na acção. Segundo, conhecer a rota para aproveitar os ventos desfavoráveis da conjuntura para chegar ao porto de abrigo (Séneca dixit). E reconhecer que a tirania da realidade deve prevalecer sobre a ilusão das soluções fáceis.

Num livro recentemente publicado Saúde em Portugal - Pensar o Futuro identificaram-se desafios da Saúde. Desde o inverno demográfico com maior prevalência de doenças crónicas degenerativas, à necessidade de mais investimento na Prevenção das Doenças, na Saúde Oral, Saúde Mental, expansão da rede de Cuidados Continuados e reestruturação dos Centros de Saúde para reduzir a procura hospitalar. Assim como, Meritocracia na selecção dos profissionais e Qualidade na actuação clínica, medida por indicadores de eficácia e não apenas pela quantidade de actos realizados.

Qualquer proposta reformadora deveria ter em conta estes desafios, assentar em valores de solidariedade, equidade e promoção da cidadania da Pessoa Doente e num contrato social que promova a liberdade de escolha do doente e responsabilidade individual na defesa da Saúde. E na convergência dos diferentes parceiros, privados e sociais, no contexto de Sistema de Saúde sendo o SNS elemento estruturante e referencial de qualidade, bem como na formação permanente dos seus recursos humanos, na investigação e incorporação da inovação e na utilização inteligente da transformação digital para modernização dos serviços e melhor comunicação.

O NHS (Serviço de Saúde britânico) fundado a seguir à 2.ª guerra, serviu de modelo e inspiração ao SNS e tem mais 30 anos de história, um espelho para onde devemos olhar. Reconheceram que excessiva burocratização e dependência dos ciclos políticos induziam reformas contraditórias e reduziam a sua capacidade de adaptação, que parcerias público-privadas na gestão e financiamento e o recurso aos serviços privados foram úteis e permitiram melhorar carências medicamente inaceitáveis. E lá como cá, o mercado de seguros privados cresceu significativamente. Há anos criaram entidade pública autónoma e independente para a gestão do NHS procurando assegurar coerência, eficácia e continuidade. Ilusão tecnocrática? A dimensão política foi salvaguardada pela nomeação do seu chairman pelo governo por proposta do responsável pela Saúde, pela aprovação, no Parlamento, do programa de acção pluri-anual, para além do ciclo político vigente e pela representatividade na estrutura organizativa.

Serão estes os objectivos do novo estatuto do SNS? Não me pareceu. Para além do juridiquês difícil para leigo, a sua direcção executiva sem autonomia e dependente do responsável pela Saúde sugere mais burocracia. Pareceu-me constituir escudo defensivo para o (a) governante, bem longe da filosofia de Entidade Pública autónoma, como se sugeriu no livro já mencionado, com capacidade para gestão profissional e independente dos ciclos políticos, como o Presidente da República mencionou recentemente. Seria excelente oportunidade para reforçar consenso multipartidário necessário na Saúde.

Mudar de política e de intérprete, que personifique um novo espírito e uma visão mais abrangente não prisioneira de arquétipos passados é necessário, bem como respeito pela verdade, coragem e determinação na acção. E com obra feita, se possível! Esse é o desafio irrecusável.

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