Rio com regresso ou a viagem de Fausto às montanhas azuis

Quem se deslocar à Aula Magna para ouvir Fausto Bordalo Dias e Por Este Rio Acima, procure ouvir, ao menos, o resto da trilogia.

Num tempo em que se esgotam num ápice os bilhetes para certos concertos, como sucedeu com os Coldplay em Coimbra (208 mil bilhetes esgotados em poucas horas para os quatro concertos de Maio de 2023) ou com Harry Styles em Algés (os primeiros 10 mil bilhetes postos à venda para Julho de 2023 foram vendidos em 15 minutos), o anúncio de um concerto de Fausto Bordalo Dias teve idêntico efeito: anunciado para 19 de Novembro, na Aula Magna, esgotou-se rapidamente, e um segundo concerto agendado para o dia seguinte teve o mesmo caminho. Duas salas cheias.

Há dois motivos, evidentes. Um, é a raridade das apresentações públicas de Fausto, um dos nomes-chave na renovação da música portuguesa, o que leva a que todos os seguidores do seu trabalho, que são muitos, acorram rapidamente às bilheteiras. Outro, é que o presente espectáculo tem por objectivo celebrar 40 anos do disco que se lhe colou à pele como obra máxima, Por Este Rio Acima (1982), e cujo culto, tal como sucedeu com Cantigas do Maio em relação a José Afonso, sendo mais do que justo, corre o risco de ofuscar o resto da sua obra, que é magnífica e imensa. Por altura do lançamento do álbum, a revista Mundo da Canção (no seu número 63, pág. 11) descrevia-o desta forma: “Por Este Rio Acima é, em definitivo, a obra mais representativa da nova música popular que se editou em 1982, sobretudo pelo poder de síntese cultural que exibe de forma tão segura e inspirada.” E termina assim: “Por Este Rio Acima devolve-nos o prazer de (re)descobrir a música popular portuguesa em toda a sua maturidade criativa. Daí não hesitarmos em a considerar um marco decisivo para a história da música popular. Fundamental.” Elogios que se foram repetindo, à data e ao longo dos anos, até hoje. Milhares conhecerão, quase de cor, canções como O barco vai de saída, A guerra é a guerra, A voar por cima das águas, Por este rio acima ou Navegar navegar. Mas são também muitos os que passaram ao lado dos tomos seguintes da trilogia iniciada com tão celebrado disco, primeiro Crónicas da Terra Ardente (1994) e depois Em Busca das Montanhas Azuis (2011). Três duplos álbuns que são três obras-primas de composição e criação, não só musical, também literária, porque a escrita de Fausto é uma preciosidade.

Como se escreveu no PÚBLICO em 2011, o terceiro volume da trilogia consegue até, relativamente aos dois anteriores, “o prodígio de sedimentar tais experiências numa linguagem textual e musical que parece ter atingido o seu ponto exacto de maturidade”. O ponto de partida para Por Este Rio Acima foi A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que Fausto tinha por livro de cabeceira em finais dos anos 1970 e ia interessadamente lendo. Quando gravou o disco, não pensou continuar tal viagem. Mas percebeu depois que não podia ficar por ali. Como ele explicou ao PÚBLICO, em entrevista, com o terceiro duplo-álbum já gravado: “A diáspora tinha de continuar, já vinha de antes do Fernão Mendes Pinto e continuou depois. Mas continuar como? Aí surgiu a História Trágico-Marítima. E se o Por Este Rio Acima representa a água, o mar, o Crónicas da Terra Ardente, nem que fosse por força dos naufrágios, é a aproximação à terra. Quando eu fiz o segundo disco já tinha visto que ia continuar. E dei sinais, embora ténues, disso. Na 18.ª canção do Crónicas, o Sepúlveda enlouquece e perde-se pela terra dentro. É o primeiro sinal: alguma coisa vai acontecer, não vai morrer aqui. O segundo sinal é que eu os ponho a tentar subir um rio, na costa oriental de África.”

A Fernão Mendes Pinto, seguiram-se leituras da História Trágico-Marítima, de textos de Diogo Gomes, Cadamosto, Diogo Eanes de Azurara, Conde de Ficalho, dos relatos dos pombeiros, tudo isso à mistura com a presença forte de Silva Porto ou a lembrança da própria mãe do cantor, que morreu em África tinha Fausto 17 anos, na canção-homenagem O perfume das chuvas. Talvez isto seja ainda desconhecido ou distante para muitos dos que encherem a Aula Magna nos dias 19 e 20 de Novembro; mas fica, pelo menos, o desafio de seguirem o rasto da trilogia (ou tetralogia, se nela incluirmos o disco Para Além das Cordilheiras, de 1987, que trata de uma outra viagem, a dos portugueses à descoberta da Europa), ouvindo-a na íntegra e lendo-a, porque nas letras das canções e nos textos que as acompanham se sintetizam séculos de história. Que não é a do colonialismo, mas, segundo o próprio Fausto, “a dos homens que se movimentaram como mercadores e, ainda mais do que estes, dos que sonhavam descobrir mundo”. Quando o barco ainda ia de saída…

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